Por Jansen Oliveira

Antigamente, acreditava-se que os morcegos, ao sugarem o sangue de suas presas, assopravam a ferida para inibir a dor e serenar as vítimas. Hoje, no entanto, sabe-se que a saliva dos hematófagos contém uma substância anestésica que impede a reação imediata das vítimas ao estancar a dor. Da crença popular, surgiu então o ditado “morde e assopra”, expressão que se refere à conduta de uma pessoa cínica e falsa, que age de modo incorreto e depois disfarça a sua atitude.

Desde que o então deputado federal se apresentou para o país como pré-candidato à presidência, somos brindados com frequentes bolsonariadas – um misto de poder e piada. O país parece estar assistindo a um programa de televisão popularesco, como aqueles do apresentador Ratinho, onde o mandatário da nação adorava agitar o auditório que o recebia sob vaias homéricas. Ou ainda, quando se apresentava nas esparsas vezes que utilizava o púlpito parlamentar.

Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo” – afirmou o capitão em entrevista à revista Playboy, em junho de 2011.  Naquela época, o dito não era desdito e ponto final.

A partir da pré-candidatura, a acidez de Bolsonaro precisou ser moderada, a fim de ampliar sua rede de correligionários. As declarações polêmicas e agridoces, portanto, passaram a ser seguidas de um complemento que não necessariamente vinha após seus pronunciamentos. A clara ideia era de suavizar o primeiro impacto de suas declarações. Tática do morde e assopra.

O onipresente do deputado federal, que adotou o nome Hélio Bolsonaro em sua campanha, mas é tratado por Bolsonaro como Hélio Negão serviu de uma espécie de salvo-conduto para uma destas catastróficas falas do então candidato Jair Bolsonaro, em 2017, no Clube Hebraica. Ao comentar uma visita que fez a uma comunidade quilombola em Eldorado Paulista, disse o então futuro presidente: “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais”.

Mais adiante, diante da repercussão de sua fala na imprensa, em uma de suas pitorescas lives, Jair Bolsonaro, com a gargalhada característica, assopra: “o negão é o Hélio…meu irmão que demorou pra nascer… demorou 10 meses pra nascer e deu uma queimadinha… senão ele seria a minha cara”.

A mais nova bolsonariada – pasmem – foi a desnecessária resposta a um jornalista que o indagou sobre o recorde de mortos em virtude da Covid-19. Em uma espécie de arroubo de si mesmo, disparou: E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?

Em sequência, quando soube que a conversa estava sendo transmitida ao vivo, assoprou: “Lamento a situação que nós atravessamos com o vírus. Nos solidarizamos com as famílias que perderam seus entes queridos, que a grande parte eram idosas, mas é a vida. Amanhã vou eu.” Por essas e outras que muitos brasileiros redobram a expectativa na literalidade da sua última frase.

A esperança de que o “trono” fosse dar equilíbrio ao atual Presidente da República, tem-se esvaído. Diante de todas as manifestações espontâneas do candidato à presidência, depois de eleito não se poderia mesmo esperar outra coisa – a saliva do morcego parece ter anestesiado a consciência de uma parcela significativa do povo brasileiro, mas não há anestesia que dure para sempre. Agora, no auge de uma pandemia, a dor da mordida parece começar a incomodar.

Chegou a hora de exigirmos do chefe de Estado um comportamento mais republicano, à altura do cargo. Fechar os olhos diante de tantas manifestações que desrespeitam os mais comezinhos direitos humanos é prestar um desserviço à nação. Em meio a maior crise mundial deste século, não podemos permitir manifestações na contramão da solidariedade, da compaixão e da fraternidade, sob pena de pagarmos caro por essa omissão!


Jansen Oliveira – Advogado.