Por Conrado Hübner Mendes

Respeito às urnas depende de generais que vêem em 1964 ‘marco da democracia’.

O Tribunal Superior Eleitoral se deixou enredar na construção da “Grande Mentira”, versão brasileira. Já se escuta por aí o grito “Parem o Roubo”. “Big Lie” e “Stop the Steal” foram apitos que incitaram invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, parte do roteiro de golpe traçado por Donald Trump.

O Facebook já registra 247 mil interações diárias sobre fraude eleitoral no Brasil. O Telegram se exonerou do dever de obedecer às leis e decisões judiciais do país. Desinforma e espalha comunicação criminosa lá de Dubai. Bolsonaro faz campanha antecipada paga com cartão corporativo sigiloso. Fechados em copas, STF e TSE meditam e esvaziam a consciência.

A projeção mais certeira sobre as eleições de 2022 aposta que Bolsonaro não aceitará eventual derrota. Se derrotado e alguma força lhe restar, resistirá a entregar o poder. Se forçado a entregar, fará todo o estrago adicional ao seu alcance. Se não punido e a leniência conciliatória vencer, continuará a galvanizar ódio e ameaçar liberdades junto com a grande família.

A ideia de que Bolsonaro foi derrotado quando a Câmara rejeitou voto impresso e a promessa de golpe se limitou aos latidos em 7 de setembro trivializa o comportamento do presidente. O que ele diz querer, às vezes, pode não equivaler ao que ele efetivamente quer e consegue. Esses episódios lhe renderam dividendos.

O TSE premiou a delinquência ao hospedar dois militares em postos-chave: na direção geral se sentou general que, como ministro da Defesa, festejou ditadura como “marco da democracia”, e desistiu do cargo por razões ainda mal conhecidas; na comissão de transparência, entrou general indicado pelo ministro Braga Netto, virtual candidato a vice de Bolsonaro. Em 2021, redigiu ordem do dia para comemorar “movimento de 1964”.

Para o TSE, essa concessão apaziguaria o conflito. Como disse Barroso, “com Forças Armadas, não tem por que duvidar do voto eletrônico”; “esvazia eventual discurso de golpe”; “Bolsonaro entendeu que não existe fraude nas eleições”.

Barros não cogitou que o efeito pode bem ser o inverso. Generais do TSE, alçados a fiadores últimos das eleições, nem precisam inventar fraude. Basta assoprar dúvida sobre a urna eletrônica para que o “discurso de golpe” torne-se incontestável e não-falseável. Formou-se arranjo institucional para que a “Grande Mentira” viceje.

Mesmo que não tivesse matado, torturado e se isentado de responsabilidade; mesmo que não mais ensinasse em sua escola de guerra que a Constituição autoriza intervenção militar; mesmo que não mais injetasse anticomunismo iletrado na veia e não atacasse a Comissão da Verdade; mesmo que fosse competente em gestão; mesmo que não houvesse interesses em eleger mais um vice-presidente, a instituição não disporia de credencias para esse papel.

Barroso não pode ser acusado de falta de contundência verbal. Bolsonaro o chamou de “idiota”, “imbecil” e “filho da puta”. Respondeu com “farsante”, “fanático”, “cego” e “covarde”. Dias atrás, Barroso lembrou outra vez que presidente “tinha dado a palavra”, “facilitou a vida das milícias digitais”, e “não precisa de fatos, a mentira já está pronta”.

Ao mesmo tempo, nunca deixou de fazer elogios não solicitados às Forças Armadas. “Duvido que eles queiram estar lá de novo”, mas um número recorde de milicos lá já estava. O “varejo da política” foi povoado por eles.

Apesar de nenhum ter sido punido por crime contra a humanidade, Barroso entende que “pagaram um preço muito alto após estarem no poder”. “Não há razão para teme-los”, avisava.

Barroso foi um dos professores de direito que mais rodaram o Brasil na busca de promover uma nova cultura constitucional e democrática desde a década de 90. Missão cívica valiosa. Quando a história de progresso começou a ruir, contudo, refugiou-se no negacionismo político.

Seu discurso sobre a qualidade da democracia brasileira em 2020 era parecido com o de dez anos antes. Em 2022, fez uma concessão: “não acho que haja risco de retrocesso, apesar de maus momentos recentes”.

Nunca se permitiu levar Bolsonaro a sério. Afinal, como um sujeito rude e tosco, com “limitações cognitivas e baixa civilidade”, apresentaria “risco real”? A imodéstia dos bacharéis também cria suas distorções cognitivas.

A política judicial de apaziguamento, estratégia tocada por vários ministros, eco experiências trágicas na história da violência política do século 20. O autocrata nunca cumpriu a palavra. Não há qualquer razão para pensar que o autocrata brasileiro descenda de linhagem mais nobre. Nem os generais que o abraçaram.

O TSE acreditou em Bolsonaro quando este prometeu só querer uma comissão de transparência temperada com general. Sacou uma solução salomônica e gerou risco irreversível para 2022. Em novembro, pode ser que os generais meditem e se comportem. Ou pode ser que não.

Conrado Hübner Mendes – Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC

Publicado inicialmente na Folha de SP. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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