Redação –

Aos 57 anos, “Irmão” viu-se sozinho e com quatro filhos pequenos para criar. Morador da Ilha da Fazenda, um vilarejo com 80 casas encravado no Rio Xingu, no Pará, há 15 meses ele decidiu deixar as crianças com a avó. Foi tentar a sorte num garimpo ilegal a 1.500 quilômetros de sua família, no coração da terra indígena ianomâmi, a maior do Brasil, em uma área da floresta amazônica em Roraima. A poucos metros de sua casa, a mineradora canadense Belo Sun se preparava para começar a extração de ouro, mas “Irmão” não via chance de emprego.

— Eu mal sei assinar meu nome — diz “Irmão”, como ele é chamado no garimpo ilegal em que trabalha na terra indígena. Lá, todos se conhecem por apelidos. Filho de garimpeiro, ele seguiu seu irmão, com quem compartilha o ofício, e que está há mais tempo trabalhando em um barranco à beira do Rio Uraricoera. “Irmão” está no Mucajaí, um rio próximo. Os dois buscam os gramas de ouro com as mãos.

A nova corrida pelo ouro se dá em paralelo ao anúncio do presidente Jair Bolsonaro de que pretende legalizar a exploração mineral em áreas indígenas. Na reserva ianomâmi, a ação ocorre hoje nesses dois rios (Uraricoera e Mucajaí), que também são os mais importantes para seu povo.

Garimpam ali, pelas estimativas das lideranças indígenas e dos próprios garimpeiros, de 10 mil a 15 mil pessoas, num universo de tensões, violência, conflitos e destruição ambiental. Já os ianomâmis são cerca de 23 mil vivendo em Roraima e no Amazonas.

O Globo esteve durante quatro dias na terra indígena ianomâmi e subiu o Rio Mucajaí. O rio é largo, curvilíneo e margeado por uma exuberante floresta. Tem águas mais turvas do que o comum para o atual período de chuvas, um indicativo da atividade garimpeira na região.

Os invasores sobem o rio em canoas de médio porte e motores potentes, por dias, para chegar às áreas de exploração de ouro. Uma fumaça na mata, um banco de areia na margem ou um motor exposto, sugando a água do rio, são os sinais mais óbvios de que, naquele lugar, está em operação um garimpo ilegal. Pelo ar rasgam, o tempo todo, pequenos aviões carregados de gente e ouro. A mata densa esconde trabalhadores abrigados sob a lona. Quando estão trabalhando, eles submergem nas crateras abertas após o desmatamento. Dali, sairá o metal cobiçado: o ouro.

No fim da década de 1980, pistas clandestinas de pouso e decolagem de avionetas rasgaram a terra dos ianomâmi e a quantidade de garimpeiros no local explodiu. Chegou a 40 mil pessoas. Ao longo das décadas, a febre do ouro na reserva teve altos e baixos. Hoje, com a nova leva de exploração, os ianomâmi estão pressionados pelo garimpo, com o mercúrio correndo nos rios. E os garimpeiros — ora pobres, ora miseráveis — tentam a subsistência e a fortuna.

Em Boa Vista, a capital mais próxima, outro drama torna o cenário mais desolador: com a chegada de milhares de refugiados venezuelanos, o emprego não qualificado rareia.

A 115 quilômetros da reserva, Boa Vista ergueu um Monumento ao Garimpeiro, no centro da cidade. Roraima tem 35 mil garimpeiros, todos eles na ilegalidade e com atuação focada na terra ianomâmi.

A febre do ouro levou a uma reação do Estado, suficiente para sufocar o fluxo de entrada de novos garimpeiros na reserva indígena, mas ínfima no intento de reverter o problema e tirar do local os que ali estão.

Há um ano, a Polícia Federal (PF) deflagrou operação para combater o garimpo ilegal na terra ianomâmi, com foco nos grandes exploradores de ouro, donos de aviões e máquinas. Quase 30 pessoas foram presas e 18 aviões, apreendidos. Entre os investigados, um dono de garimpo já condenado por genocídio de 16 ianomâmis em 1993.

Há dois meses, uma operação do Exército destruiu pontos de exploração de ouro na terra ianomâmi e reativou postos de controle. Consistem em uma corda de ponta a ponta de cada um dos dois rios e bases com jovens militares armados. Os soldados só chegam aos focos de garimpo em transporte aéreo.

Apesar da operação do Exército, os “tatuzões” seguem operando. É muito comum a presença de índios na condução dos barcos de garimpeiros e relatos de pagamentos a representantes dessas aldeias, para que se siga rio acima e entre na mata em busca do ouro. Nos portos improvisados, boa parte dos índios passa os dias alcoolizada.

Cada “tatuzão” é operado por cinco ou seis garimpeiros. A água é bombeada do rio, carregada para valas gigantes abertas e usada para lavar a terra, empurrada para uma caixa que retém as partículas de ouro presentes. Dias depois, os garimpeiros “batem” os tapetes onde o minério fica retido. E aí entra o mercúrio: para agrupar as partículas. Logo depois, é descartado na água, que volta para o rio. O ouro é queimado, o mercúrio evapora — esta é a etapa mais tóxica — e retorna à forma líquida. E cai na água de onde os ianomâmis retiram parte de sua comida.

Os garimpeiros passam os dias na selva. Tomam banho com água da chuva. Dormem em redes. Padecem de malária e leishmaniose. E de crack e cocaína também.

“Irmão” trabalhou três dias seguidos para receber oito gramas de ouro. Cunha, de 43 anos, integra o grupo de “Irmão” no barranco. Recebeu os mesmos oito gramas. A divisão é praticamente cartelizada: o dono do “tatuzão” fica com 70% do ouro; os trabalhadores dividem os outros 30%. E ninguém reclama.

A partilha do ouro, depois da extração e da queima, é tensa. Ninguém quer ser passado para trás. Quando chega aos acampamentos, a comida tem um preço altamente inflacionado: um quilo de carne custam um grama de ouro; uma caixa de cerveja, um grama e meio. O dinheiro perde o valor. Se o câmbio fosse relevante ali, um grama equivaleria a algo como R$ 130. O ouro pode render até R$ 10 mil num mês a um garimpeiro mais braçal.

— É dez mil vezes melhor do que na cidade. Ganho para ter minha caminhonete, minha casa e meus filhos na escola e fora do garimpo — diz Cunha, que já explorou ouro ilegal na Venezuela, nas Guianas e no Suriname.

“Irmão” planeja voltar à Ilha da Fazenda, no Pará, só em janeiro do ano que vem. É para quando está previsto um novo cadastro dos moradores do vilarejo pela mineradora Belo Sun, que quer explorar cinco toneladas de ouro por ano, ao longo de pelo menos 12 anos. Populações indígenas serão diretamente impactadas e vêm se opondo ao projeto. “Irmão” quer sair da ilha e ser indenizado. Isto se, de fato, deixar a terra ianomâmi. (Reprodução/fonte: O Globo, por Vinicius Sassine)