Por Roberto Amaral –
Toda sociedade que se preza (como EUA, Rússia, China e Cuba) tem sua própria visão de mundo, de que decorre a projeção e defesa de seus interesses; são países detentores daquilo que alguns chamam de “caráter nacional”, uma autoidentidade definidora do papel que a nação soberana decide desempenhar no jogo dos blocos econômicos e militares. São países que possuem pauta própria, atores históricos assistidos por classes dominantes servidoras da sociedade e do projeto de país. Não é o caso brasileiro, como se vê. Nossas chamadas elites são forâneas e alienadas, descomprometidas com a construção de um projeto de país, reprodutoras dos valores e dos interesses da potência hegemônica. Falta-lhes tudo, mas falta-lhes principalmente o sentido de pertencimento a uma ordem comum. Não se identificam com o país, muito menos com seu povo. Essa elite aculturada nos governa em todos os campos da atividade humana: nos negócios, na política, nos partidos, num congresso desfibrado à mercê do centrão, num judiciário paquidérmico e classista, numa academia que não enxerga um palmo adiante do nariz, insensível ao Brasil real que tenta sobreviver do lado de fora de seus muros.
Quem não tem luz própria é levado a reproduzir os valores, a ideologia, os interesses das forças hegemônicas. Neste quadro, destaca-se o papel dos grandes meios de comunicação, no Brasil um decadente oligopólio empresarial a serviço do monopólio ideológico, instrumento da dominação de classe. O mundo de sua percepção, aquele que traz para os lares brasileiros, é o mundo das grandes redes de comunicação europeias e norte-americanas, que assim nos ditam simpatias e antagonismos, em função da geopolítica do comércio e da guerra. No frigir dos ovos é o Departamento de Estado dos EUA que decide o que a imprensa brasileira deve pensar e transmitir sobre seus adversários e aliados. Mediante suas lentes é que olhamos para a China, para a Rússia, para a Ásia e o Oriente, para palestinos e judeus, para nossos vizinhos.
E, ainda, é por esse filtro que nos vemos a nós mesmos.
O silêncio dos grandes meios à presente viagem de Lula à Europa é um escárnio a qualquer noção de decência e escancara seu partidarismo, e só foi quebrado, ao fim, graças às janelas propiciadas pelas redes sociais.
Os jornalões, na comunhão do autoritarismo com a partidarização, não gostaram do primeiro volume da biografia que Fernando Morais, este belo escritor e repórter, escreveu sobre Lula. Reclamam sem parar. Simplesmente porque Morais não tratou, até aqui, dos processos de corrupção na Lava Jato (Estadão, 17/11/2021). Na mesma edição, que não reserva uma só linha à viagem de Lula à Europa, o colunista Marcelo Godoy, muito respeitado pelas suas sempre boas análises sobre o poder dos fardados, reclama porque o leitor do autor de Olga e Chatô, rei do Brasil não encontrará, na biografia de Lula, a “análise das acusações, das provas e dos processos que levaram à condenação do ex-presidente”. A quais provas, porém, e a quais processos se refere o colunista? Àquelas provas e àqueles processos anulados pelo STF? Ora, essas descreditadas acusações tonitruadas nos tempos da Lava Jato (empreendimento que não teria o bom êxito que obteve não fosse o concurso da grande imprensa) estão sendo repetidas, repisadas, cozinhadas e reavivadas todo santo dia pelo jornal em que Marcelo Godoy escreve. Por que haveria Fernando Morais de levar mais água para o moinho da candidatura do “juiz ladrão” (na precisa qualificação do deputado federal Glauber Braga), o único juiz brasileiro que mereceu do STF a condenação de juiz parcial?
Há, porém, no texto de Marcelo, um parágrafo que pode sugerir reservas à editora da biografia de Lula. É quando Godoy admite que “haverá questionamento à Companhia das Letras sobre a opção de editar a obra que trata do petista feita por um escritor que declara simpatia pelo ex-presidente”. Este parágrafo soa estranho, insinuando um vício ético. Em princípio sugere algo muito próximo de censura à Editora, e põe em dúvida as credenciais de Fernando Morais. Godoy pretenderá dizer que, para ser isenta (se é que uma biografia ou um texto jornalístico qualquer, ou mesmo uma pesquisa histórica, pode arguir isenção), a biografia de Lula deveria ser encomendada a Moro, Dallangnol ou Ciro Gomes? Ou, talvez a um extraterrestre. Por fim, no evidente intuito de depreciar a obra de Morais, o colunista termina por reduzi-la a mera versão “de um jornalista que tem lado”. Ora, Marcelo, todos temos lado, você tem lado, Fernando Morais tem lado, como este escrevinhador; a diferença é que o nosso é distinto do seu.
Autocolonizada (a submissão é uma escolha), a classe dominante brasileira é bisonha e frívola, ridícula em sua macaquice diante da potência econômica e seus valores, a fonte única de seu modo de ser, que tenta copiar. Depois da ‘Estátua da liberdade’, o ridículo atroz erguido como imagem votiva de um shopping center na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, para a adoração de “emergentes”, a Bolsa de Valores de São Paulo, templo e altar do capitalismo brasileiro em sua versão especulativa, instalou, na sua porta, uma réplica do Touro de Ouro (Changing Bull) que orna Wall Street, em Nova York. O bovino, por sinal, mereceu foto na capa do Estadão. Homenagem significativa. Nada mais denotativo da assimilação pelo colonizado do discurso do dominador. O que Frantz Fanon, em Os condenados da terra, chamava de fraqueza congênita da consciência nacional dos países subdesenvolvidos, a saber: o resultado da traição de sua burguesia, desde a origem mais remota da formação nacional associada aos interesses da metrópole e guardiã de seu domínio sobre a colônia.
Nada mais ilustrativo de um triste país que se deixaria dominar pelo bolsonarismo.
***
A herança da Lava Jato – Segundo o DIEESE, as operações da Lava Jato levaram à perda de 4,5 milhões de empregos. Foram destruídas a indústria naval nacional e as cadeias produtivas do petróleo, e desmontada a indústria de engenharia civil. O pré-sal, como sabemos, foi entregue a empresas estrangeiras e multinacionais. Dados para a próxima campanha eleitoral.
Plantão econômico – A energia elétrica residencial acumula, entre outubro de 2021 e outubro de 2020, uma alta variável entre 19% e 39%, pressionando o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A inflação no período é de 10,6%, atingindo mais duramente o desempenho dos segmentos de combustíveis e supermercados. As vendas do varejo caíram 1,3% em setembro.
Tudo em casa, como sempre – O atual diretor de política econômica do Banco Central, Fabio Kanczuk, conclui seu mandato em 2022 e será substituído por Diogo Guillen, economista-chefe da Itaú Asset.
Segue a dilapidação da Petrobras – A empresa presidida pelo general Joaquim Silva e Luna (ministro da defesa no interregno de Michel Temer) vendeu a Unidade de Industrialização do Xisto (SIX) ao grupo canadense Forbes & Manhattan Resources. É a terceira venda de refinaria da companhia, que já se desfez de 17% da capacidade do parque nacional de refino. A propósito: o litro do diesel acumula no ano um aumento de 65%.
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. www.ramaral.org
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