Por João Marcos Buch –

“Eu me pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?” Almeida Garrett

Há poucos dias ouvi de um preso, jovem, negro, pobre, que precisava estudar, aprender um ofício. Sua liberdade estava próxima e ele não sabia como seria, pois nunca aprendera a trabalhar e também não tinha estudos. “Doutor, eu quero ter uma família, uma casa, um trabalho, mas não sei como vou conseguir, não sei fazer nada e nem ler direito eu consigo. E a vida lá fora a gente sabe, ninguém quer saber de ex-presidiário.”

No seu artigo 1º, a Lei de Execução Penal (LEP) estabelece que a execução da pena tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. Dessa norma, nada precisa ser conjecturado, a interpretação é literal: o objetivo da execução da pena é efetivar as disposições de sentença ou decisão e proporcionar condições para, quando do retorno à liberdade, o apenado assim o faça harmonicamente, integrado na sociedade.

Portanto, se existem leis que deixam dúvidas e implicam em árduas interpretações para se chegar à sua finalidade, seja na intenção do legislador ou da própria norma, não é o caso da LEP, certo? Errado!

Até hoje, não conseguimos, sociedade e Estado, reconhecer aquele que está preso como alguém pertencente ao nosso coletivo, muito menos quando a pessoa deixa a prisão. A anunciada integração ou é ignorada ou é mal interpretada. Um regime rigoroso de disciplina, de castigos e violência impregna as superlotadas cadeias do país. Pouco ou nada se oportuniza aos presos para que saiam do ciclo da miséria.

Esse comportamento social reflete, talvez, a mais perversa de nossas características, a de que não somos iguais em direitos e deveres, de que em nosso país há quem mereça mais privilégios e há quem nada mereça, nem os direitos básicos fundamentais.

Historicamente, não nos baseamos na igualdade, mas num regime de classes hierarquizadas. Nessa divisão, ricos não compreendem o sofrimento de pobres e a classe média, além de não compreender, quer distância, quer se colar nos ricos, maltratando os mais pobres. Assim, quando se volta a atenção a quem está preso, na sua maioria negro e em sua totalidade pobre, há uma espécie de satisfação em saber que não eu, mas o outro, “o inferior”, é que vai para o cárcere.

Pouco importa, portanto, a origem do aprisionamento e da violência, da falta de integração. Não há interesse em saber que ainda que a Constituição estabeleça o princípio da igualdade como um direito fundamental (art.5º, I) boa parte dos jovens no Brasil não encontra instrumentos oficiais para realizar aquilo que lhes é proposto como sentido da vida e da felicidade, a integração social. Ignora-se que a família, desestruturada, já não assiste seus filhos; a escola, sem recursos, não desperta interesse em seus alunos; o trabalho, precário, não proporciona remuneração satisfatória aos seus empregados.

Os jovens, enfim, pela margem seguem seu curso, sobrevivendo um dia de cada vez. Muitos deles encontram nos furtos, roubos, assaltos e tráfico de drogas um viés da integração que lhes foi imposta. É certo, porém, que na ausência de um Estado que aplique o Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu conteúdo programático e de proteção integral, aos 18 anos esses jovens são alcançados pelo Estado penal, que lhes lança um carimbo na testa: “bandido”. “Precisamos quebrar a espinha desse marginal”, dizem uns.

O que realmente interessa, em um país de identidade escravocrata, patriarcal e colonialista, é a existência de servos e senhores. Nessa linha, a prisão destina-se àquele que pouco foi integrado em seu passado, que viveu boa parte de sua história em anomia, desligado da cidadania, ceifado de oportunidades. E depois de preso, no lugar do acolhimento, passa a ser tratado como o indesejado, alguém que precisa ser neutralizado, jamais integrado. É que a prisão é reflexo da sociedade, é entrando nela que conhecermos o grau de civilidade de um povo, já teria dito o escritor e filósofo russo Fiódor Dostoiévski há mais de 150 anos. E, se o Estado não quer integrar, a prisão muito menos o fará.

Diante disso tudo, a melhor interpretação do artigo 1º da LEP é inversa ao que até agora foi feito. Quando se fala em harmônica integração social do apenado, o olhar precisa recair para antes da prisão, não sobre o apenado, mas sobre o livre.

O desafio é integrar as populações vulnerabilizadas, através da educação, da saúde, da habitação, especialmente, através do reconhecimento e valorização da cultura, a cultura brasileira, com suas matrizes africanas, sua ancestralidade indígena, sua brasilidade. E mais, o desafio urgente se apresenta na educação ética e humanística das classes rica e média, com especial recorte àquela de remota origem europeia, estagnada no século XIX, reprodutora do racismo, que insiste em não se integrar e não reconhecer o todo e sua diversidade cultural.

Que não sejamos estrangeiros dentro de nossa própria casa, vamos integrar o livre e não segregar o preso.

E quanto ao preso que me interpelou, ele teve minha atenção, tentei por ele. Que tenha quebrado a regra e que tenha conseguido se integrar.

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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