Por Ricardo Cravo Albin

“É desta maneira que nós somos feitos: metade de indiferença, outra metade de maldade. Liquidar um dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas de nada serve”. José Saramago

Não importa que o evento monstruoso tenha sido cometido há mais de duas semanas, não importa que as consciências críticas dos cariocas tivessem sido um tanto consoladas pela solidariedade de centenas de frases e textos de repúdio e espanto de jornalistas, artistas e cidadãos escandalizados pela barbárie. Portanto, aqui está este indignado escritor a reiterar não apenas a solidariedade à mãe de Moïse senão também ao Congo, um país agredido, já que como emigrante legal a vítima estaria sobre a proteção do Estado Brasileiro.

Registro aqui meu horror pelo que vi no vídeo do espancamento do jovem asilado. Exigimos refletir sobre a banalidade a que chegam a tortura e a violência num quiosque de praia da orla da Barra da Tijuca. Ou seja, pedimos rápida apuração do crime e, o fundamental, punição exemplar dos assassinos. O prefeito Eduardo Paes agiu corretamente ao transferir para a família Kabagambe o quiosque onde Moïse foi assassinado, até porque o local deverá perder o nome de Tropicália e ser um tributo ao sacrifício do congolês. Por seu lado, o governador Claudio Castro afirmou em entrevista coletiva que se compromete pessoalmente com a apuração e a punição rigorosa dos criminosos.

Cabe também manifestar meu inconformismo com algumas reações enquanto o espancamento estava sendo transmitido pelo quiosque na tela da TV: 1- Os três assassinos atacaram a vítima com pancadas sequenciais por cerca de 15 minutos. 2- Pelo menos quatro outras pessoas assistiram à barbárie sem esboçar qualquer reação para defender o jovem, o que provocou posterior (e justíssima) indignação da mãe de Moïse. 3- A polícia (190) não foi acionada e só parou no local ao ver uma ambulância em frente ao quiosque.

Ideia é transformar o local num memorial em homenagem a Moïse Kabagambe. (Crédito: Divulgação/PMRJ)

Essa indiferença à vida humana e à dor dos outros são, a meu ver, gravíssimo sintoma de uma sociedade doente, porque já sem reação à barbárie. Como disse Santo Agostinho “o mundo não está ameaçado pelos maus, mas sim por aqueles que permitem a maldade.”

O congolês Moïse Kabagambe veio para o Brasil ainda adolescente, com sua família, em meio a conflitos violentos na paupérrima República Democrática do Congo. Muitos de seus parentes foram mortos. Por nada e para nada.

Agora, torna-se fundamental que se analise o porquê da sequência de crimes bárbaros exatamente na parte mais nobre e cara da cidade, a orla oceânica. O caso Moïse é o terceiro em menos de um mês. Também me chamaram à atenção as sucessivas tentativas de linchamento de suspeitos de furtos na praia da Zona Sul. Em apenas três semanas anotaram-se ao menos doze eventos desse tipo de barbárie semisselvagem.

O trágico episodio do congolês acabou por alertar a população sobre os tais quiosques que enfeiam toda a orla oceânica do Rio, do Leme ao Pontal da Barra.

Manifestação na orla da praia da Barra da Tijuca pela morte de Moïse Kabagambe. (Crédito: Reginaldo Pimenta / Reprodução)

Meu caríssimo amigo Joaquim Ferreira dos Santos publicou ontem no Globo crônica sobre os quiosques, indagando não só sobre quem está na administração dessas dezenas de bares plantados entre a calçada dos pedestres e a areia dos banhistas. Pergunta também sobre a barulhada que fazem ao cartão postal, quando infernizam o transeunte e possivelmente até seus frequentadores com música altíssima e sempre da pior qualidade. Tudo isso traz benefícios exatamente a quem? Joaquim decreta como cronista- soberano do Rio que “esse muro de barracos à beira-mar mal plantados representa a privatização daquilo que o Rio tem de melhor e deveria ser propriedade de todos”. O feroz mas terno cronista denuncia ainda a inauguração do quiosque 310. Que não vende água, nem batidinhas, nem impõe músicas chinfrins aos infelizes que por lá tomam assento. O novo quiosque é uma loja exclusiva para a venda de sandálias de plástico. E só… De fato, daqui da planície os que amamos o Rio rogam ao prefeito que reveja as concessões aos famigerados quiosques da orla.

Eu mesmo semana passada ao tomar uma água de coco – a preço quase extorsivo – pedi delicadamente para baixar a altura insuportável de um disco de funk, o mais medonho possível. Resposta curta e grossa: os incomodados que se mudem. Abandonei o coco e fiz o que me foi ordenado, sai de fininho. Explodindo de raiva.

P.S 1– Gratidão carioca aos articulistas Dorrit Harazim, Bruno Astuto e Cora Ronai, por seus brados de indignação sobre a barbárie do caso Moïse.

P.S 2– Uma estatística trágica a ser lembrada, segundo Ancelmo Gois. O Brasil detém cerca de 10 % de todos os homicídios do mundo, em que pese representar apenas 3 % da população do planeta. Estudo e conclusão de Renato Sergio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

P.S 3– “Compara-se muitas vezes a crueldade dos homens a das feras. Isso será grave injúria a essas últimas.” (Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski).

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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