Por Jeferson Miola –
Do teatro da guerra na Ucrânia surgiu a notícia de ataque russo a um hospital materno-infantil na cidade de Mariupol, no sul do país. O ataque, ocorrido na 4ª feira, 9/3, teria deixado pelo menos 17 pessoas feridas, informou o noticiário.
Este episódio é um excelente roteiro sobre como se produzem, se encenam e se propagam notícias falsas que, num passe de mágica cibernética, alcançam instantaneamente todos os lugares habitados do globo terrestre.
E este episódio farsesco também confirma o ditado de autoria desconhecida que diz que numa guerra, a verdade é a primeira vítima.
A produção da notícia falsa
Logo após o bombardeio, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky denunciou no twitter: “Mariupol. Ataque direto de tropas russas na maternidade. Pessoas, crianças estão sob os destroços. Atrocidade! Por quanto tempo mais o mundo será um cúmplice ignorando o terror? Feche o céu agora mesmo! Pare com os assassinatos! Você tem poder, mas parece estar perdendo a humanidade”.
A postagem de Zelensky estava acompanhada de um vídeo de 1:19 minutos com cenas dos enormes danos causados pelos bombardeios no interior do hospital.
Após Zelensky, o Secretário-Geral da ONU António Guterres publicou no twitter que “O ataque de hoje a um hospital em Mariupol, na Ucrânia, onde estão localizadas as maternidades e as alas infantis, é horrível. Os civis estão pagando o preço mais alto por uma guerra que não tem nada a ver com eles. Essa violência sem sentido deve parar. Acabe com o derramamento de sangue agora”.
Em seguida, e também por twitter, o vice-embaixador da Rússia na ONU Dmitry Polyanskiy escreveu: “Assim nasce fake news. Advertimos em nossa declaração de 7 de março (russiaun.ru/en/news/070322n) que este hospital foi transformado em objeto militar por radicais. É muito perturbador que a ONU espalhe essa informação sem verificação”.
A propagação da notícia falsa
Imagens e cenas televisivas rapidamente dominaram o noticiário online em todas as partes do mundo. A imagem de uma gestante carregada na maca foi replicada ad nauseam.
Na Globo News, por exemplo, a apresentadora Maria Beltrão mostrava cenas e narrava o que via e, pior, o que desconhecia totalmente: “olha só gente, mulher grávida saindo da maternidade. Tínhamos informações de que eram muitas mulheres em trabalho de parto. Pelo amor de deus, pelo amor de deus”, ela exclamou.
Mídia russofóbica ignorou esclarecimento oficial da Rússia
Àquela altura, já corria pelo mundo o esclarecimento oficial do governo russo de que a maternidade já não funcionava naquele prédio atingido, porque foi transformado em base militar de milícias nazistas ucranianas. Mas a mídia russofóbica ignorou solenemente o esclarecimento russo e não observou o básico do jornalismo, o contraponto.
O hospital não funciona desde o início da ofensiva russa, há duas semanas, porque pacientes e equipes técnicas tinham sido dispersadas dali pelas forças milicianas do Batalhão neonazista Azov. Os milicianos do Batalhão Azov estrategicamente montam trincheiras de combate em hospitais, maternidades, escolas e em edifícios residenciais.
No momento do bombardeio ao prédio, portanto, não havia nenhuma mulher gestante, menos ainda em trabalho de parto, como informou a apresentadora da Globo News, Zelensky e o dirigente da ONU. Tampouco haviam crianças internadas.
De acordo com o site Anti-Spiegel, a imagem da mulher grávida na maca foi uma encenação com uma modelo fotográfica como se fosse uma sobrevivente do bombardeio. A “atriz” da encenação se chama Marianna Podgurskaya, que possui um blog de beleza e divulga seu trabalho através da conta gixie_beauty no Instagram.
O Anti-Speigel avalia, ainda, que não se trata de vídeo amador, feito com aparelho celular, porque a qualidade técnica e a estabilidade das imagens indicam que deve ter sido produzido com uma câmera profissional com estabilizador.
A reportagem do site anota a participação da modelo Marianna em várias cenas do vídeo e também compara com fotografias em que ela aparece caminhando ou representando outros papéis [aqui].
Não existem corpos de pessoas mortas nos vídeos e fotografias
Se o prédio do hospital estivesse, de fato, ocupado, um bombardeio que causou tamanha destruição e dano material causaria, também, muitas mortes humanas.
Apesar de todo estardalhaço da mídia e da suposição de que havia muitas pessoas feridas, crianças sob os destroços, vários mortos e outros tantos desaparecidos, o curioso é que não se vê nenhuma pessoa morta nos vídeos e fotografias publicadas. E tampouco paredes e pisos ensanguentados, como seria esperável.
Notícia falsa é destaque de capa nos jornais de todo o mundo
Neste dia 10/3, apesar da informação verdadeira e correta estar disponível e acessível aos veículos de comunicação para apuração da realidade, os jornais de grande circulação em todo o planeta mostraram, entretanto, a fotografia da modelo fotográfica Marianna carregada na maca e alardearam a atrocidade do ataque russo ao hospital materno-infantil.
No Brasil o comportamento da mídia hegemônica não foi diferente. Os maiores jornais deram destaque do assunto na capa. Usando a mesma fotografia originada na mesma fonte de propagação da notícia falsa.
Jornalismo de guerra na guerra
Numa guerra acontecem muitas guerras simultaneamente – guerra informacional, psicológica, de narrativas, econômica, ideológica; guerra jornalística e contra a liberdade de expressão e de opinião etc.
A mídia hegemônica tem sido escandalosamente posicionada na cobertura do conflito na Ucrânia. Não só não apura os fatos e não certifica a veracidade das informações para evitar reproduzir notícias falsas como esta do ataque ao hospital materno-infantil, como também promove um jornalismo de guerra, sem contraponto, sem escuta de todas as partes implicadas.
Com este jornalismo de guerra, a mídia se converte numa arma muito destrutiva e devastadora.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista, Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial
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