Por João Batista Damasceno

O que aconteceu em Brasília no último dia 8 não pode ser classificado como vandalismo. Foi muito pior e é preciso juntar as peças do quebra-cabeça para nos certificarmos do fenômeno com do qual estamos efetivamente tratando. Foi terrorismo!

Poucas palavras têm suas origens efetivamente conhecidas. A etimologia é o estudo da origem e história das palavras, de onde surgiram e como evoluíram ao longo do tempo. E não faltam polêmicas sobre algumas. Mas de uma temos referência da primeira vez em que foi empregada. Trata-se da palavra ‘vandalismo’.

Da palavra ‘vandalismo’ sabemos onde e quem usou pela primeira vez. Foi o Padre Grégoire, deputado influente na Constituinte francesa e membro da Convenção, período da Revolução Francesa que antecedeu o Diretório e a ascensão de Napoleão Bonaparte. Ele a escreveu em 1794. Em seus relatórios o Padre Grégoire estigmatizou “o vandalismo e a violência revolucionária do populacho que destrói patrimônio”.

O termo foi usado correntemente depois da decapitação de Robespierre, a quem a alta burguesia dizia ser “vandalista que se infiltrou entre nós”. Padre Grégoire compunha a “Comissão dos Monumentos” ou “Comissão de Instrução Pública”, que tinha o objetivo de apurar e denunciar a ‘barbárie’ e os ‘vândalos’ como forças hostis. Além de apontar a violência dos revolucionários como nociva, inventariou “os prejuízos resultantes da venda de bens nacionais” pela aristocracia.

A referência aos Vândalos já era estigmatizada, pois se tratava do povo que o Império Romano havia expulsado quando de sua expansão e que, ante o declínio deste, retornavam aos seus territórios. Aliás, esta é a história de todos os pejorativamente nominados como bárbaros. Bárbaro era, na ótica grega, qualquer povo que não falasse sua língua e não compartilhasse sua cultura e forma de organização social. O termo foi apropriado pelos romanos e se tornou modo de expressão pejorativa na referência aos povos estrangeiros.

Gentio era apenas quem não tinha a cidadania romana, mas bárbaro era quem – além de não ter a cidadania romana – não compartilhava os mesmos valores. Numa sociedade excludente e dividida, como é a brasileira, não é difícil compreender o que pensa a classe dominante em relação aos excluídos, tratados como bárbaros a quem não se pode garantir direitos.

A história registra como feito heroico a expansão romana. Na verdade, o que tivemos foi pilhagem, dominação e violência contra outros povos. A história que exalta a expansão romana registra como invasões bárbaras o retorno do povo espoliado aos lugares de origem dos seus ancestrais.

Os Vândalos compunham uma tribo germânica oriental que contornou o atual território da Espanha, possivelmente passando por Sevilha na Andaluzia visando à travessia do Estreito de Gibraltar. Conquistado o norte da África, criaram um Estado com capital em Cartago, onde hoje existe a Tunísia. Em 455 os Vândalos vingam-se da tomada e dominação daquele território pelos romanos, desde as Guerras Púnicas. Assim, atravessaram o Mediterrâneo e saquearam Roma. Bárbaros e Vândalos eram povos estigmatizados. Vandalismo foi palavra criada pelo Padre Grégoire.

O que aconteceu em Brasília no último dia 8 não pode ser classificado como vandalismo.

Em 8 de janeiro, terroristas de extrema direita invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto, detonando-os. (@Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Não se tratou de uma turba aloprada e desorganizada destruidora de patrimônio público. Não se tratou de um evento tal como se fosse um grupo de jovens bêbados em briga de rua na saída de um baile na madrugada. Foi muito pior e é preciso juntar as peças do quebra-cabeça para nos certificarmos do fenômeno com o qual estamos efetivamente tratando. Foi terrorismo!

Terrorismo é um método que consiste no uso de violência, física ou psicológica, por indivíduos ou grupos políticos, contra a ordem estabelecida por meio de um ataque a um grupo político, ao governo ou à população que o apóia, visando ao transtorno psicológico que transcenda ao círculo das vítimas e se estenda a todos os indivíduos do grupo ou habitantes do território.

Terrorismo é uma estratégia política e não militar levada a cabo por grupos que não são fortes o suficiente para efetuar ataques abertos, sendo utilizada em época de paz, conflito e guerra. A intenção mais comum do terrorismo é causar um estado de medo na população ou em setores específicos da população, com o objetivo de provocar num inimigo político (ou seu governo) uma mudança de comportamento.

Vandalismo é mero crime de dano. O que aconteceu foi terrorismo, pois se tentou, por meio de violência e grave ameaça, depor um governo legitimamente constituído, bem como abolir o Estado Democrático de Direito. Tratam-se de crimes contra as instituições democráticas definidos no Código Penal.

A questão que se torna necessária não é, apenas, a responsabilização dos peões do tabuleiro do xadrez já identificados. Claro que devem responder pelos atos que incidiram diretamente e pelos quais contribuíram de qualquer forma. Mas em tempo de guerra híbrida é preciso analisar a quem serviam, quem comandou e quem facilitou a atuação.

O ovo da serpente começou a ser chocado nos acampamentos tolerados, apoiados e incentivados pelos comandantes militares. As Forças Armadas estão completamente implicadas no processo. Prevaricaremos perante a história se, em nome da pacificação, não impormos responsabilizações.

É hora de passarmos a história republicana a limpo, a começar pelo restabelecendo da redação original do Art. 42 da Constituição de 1988 que tratava dos servidores públicos militares, insuscetíveis de se arvorarem como poder moderador.

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.

Texto publicado inicialmente em O Dia. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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