Por Kakay

CPI da Covid teve excelente resultado técnico, mas não é o único instrumento possível para responsabilizar o presidente.

“E agora, José?
Com a chave na mão
Quer abrir a porta,
Não existe porta;
Quer morrer no mar,
Mas o mar secou;
Quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?”
– do mágico Carlos Drummond de Andrade, poema “José”.

Depois de 6 meses de investigação por uma Comissão Parlamentar de Inquérito que mobilizou as atenções do país, talvez como antes nunca tenha ocorrido, o relatório final comporta um misto de sensações. Por um lado, há extrema satisfação pelo excelente resultado técnico obtido com o incansável trabalho de boa parte dos senadores, especialmente do relator. Por outro, uma indefinível frustração diante do não indiciamento, pelo menos do presidente da República e do ministro da Saúde, pelo crime de homicídio. Homicídio por omissão na condução da pandemia. O Brasil merecia e esperava esses indiciamentos.

É importante ressaltar que a CPI é um poderoso instrumento de investigação, mas, como um braço do Poder Legislativo, está, evidentemente, sujeita aos pesos e contrapesos da política. Não é um palco somente técnico e isento. Ao contrário, é um instrumento de poder e, por ser uma comissão do Senado Federal, está sujeita aos jogos políticos que, afinal, definem a democracia. Tudo dentro da normalidade constitucional.

Já atuei em várias CPIs. Numa delas, a da CBF/Nike, que também mobilizou o país, em menor escala, advoguei para a CBF e para seu então presidente. Depois de muita tensão, conseguimos maioria na Câmara dos Deputados para não aprovar o relatório final. É o jogo natural e democrático do Congresso. Ganha quem tem mais votos. Digno de nota o fato de o então relator, indignado, ter apresentado o relatório derrotado ao PGR, e eu, como advogado, ter conseguido uma decisão liminar para impedir o uso oficial do relatório não aprovado. Faz parte do processo democrático.

Até por isso, entendo que o relatório final, que não contempla a imputação do crime de homicídio ao presidente da República e ao ministro da Saúde, não representa o desejo do povo brasileiro. Desejo que está, no caso concreto, acima dos interesses da maioria dos senadores integrantes da comissão.

O objetivo da criação da CPI da Covid era exatamente investigar a responsabilidade pela tragédia na condução da crise sanitária. O maior desastre e o caos completo se revelam exatamente na criminosa condução da política que levou à morte, desnecessariamente, pelo menos 200 mil dos 600 mil mortos no Brasil.

Esse é o ponto. Esse é o nosso compromisso. Essa é a resposta que a CPI deve aos brasileiros, em nome dos que perderam seus entes queridos. Em homenagem aos que ficaram com suas dores indizíveis e aos que partiram antes da hora.

Não há como não lembrar dos haicais de João Guimarães Rosa:

Romance I:
“No cinzeiro cheio
de cigarros fumados,
os restos de uma carta…
Romance II:
“Bem na frente
de um retrato empoeirado,
uma aliança esquecida…”

Partir antes da hora significa abortar sonhos e histórias. É muito doloroso ver pequenos órfãos que terão uma vida inteira pela frente sem a convivência com os pais, ou adolescentes assumindo responsabilidades de criar um irmão, enfim, uma tragédia que deve e tem que ser reparada.

É em nome dos milhares de brasileiros que continuam rondando as nossas vidas e as nossas noites, insepultos e sem cumprir um ciclo, que temos que cobrar do Congresso Nacional o indiciamento pelo crime de homicídio. Mas, devemos ressaltar, ainda que o indiciamento, simbólico, não tenha acontecido, nada impede que uma ação penal subsidiária seja ajuizada para responsabilizar esses atores pelos crimes cometidos. Independentemente do indiciamento.

Desde abril, já existe na mesa do procurador-geral da República um aditamento à representação feita pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados que trata exatamente da responsabilização do presidente da República, por omissão, pela morte de milhares de brasileiros. O documento elaborado pela OAB cuida de imputar crime sanitário; já o que foi feito pelo grupo de especialistas, nomeados pela OAB, cuida de maneira técnica e fundamentada da imputação do crime de homicídio. Tenho a honra de ser um dos signatários desse aditamento.

Ou seja, os trabalhos da CPI serviram para evidenciar um rosário de crimes cometidos por várias autoridades. O indiciamento indica aqueles crimes que o relator e seu grupo tiveram força política para fazer constar no relatório final. Mas, evidentemente, o relatório, na sua descrição técnica e minuciosa das condutas criminosas, tem uma força muito maior do que o ato de indiciamento.

Nada pode superar os inúmeros depoimentos que paralisaram o país. Os relatos emocionados das vítimas do horror que se instalou com o uso de brasileiros como cobaias em tratamentos sabidamente ineficazes. As descrições macabras das condutas que desatendiam ao objetivo de salvar vidas em benefício da cobiça e interesse econômico.

Remeto-me ao eterno Pessoa, no imortal poema “A Tabacaria”:

“Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido.”.

Toda a memória viva do que passamos nesses meses de agonia, angústia e desespero serve para cobrar uma atitude digna dos responsáveis pela condução daqui para frente. Propus, várias vezes, a necessidade de tirar os poderes imperiais das mãos, especialmente, do presidente da Câmara e do procurador-geral da República.

No tocante ao crime de homicídio, na ausência de manifestação do PGR, a ação penal subsidiária é o caminho para não deixar impunes os responsáveis. Só assim, mesmo que a dor da perda seja lancinante e eterna, poderemos devolver um pouco da paz de espírito para uma nação que está atordoada com tanta barbárie. Nós devemos isso aos que perderam seus entes queridos, amigos, filhos, companheiros, irmãos e também em memória dos que se foram.

Sempre lembrando do nosso Chico Buarque e do grande Ruy Guerra, em Fado Tropical:

“E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa…”

KAKAY ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e colunista da Tribuna da Imprensa Livre. Publicado inicialmente em Poder 360.


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