Por Lincoln Penna –
Mito é uma lenda e pode ser uma legenda.
Há quem assim é designado por pessoas que desconhecem o significado da palavra e o emprega como se fosse um atributo de presumível líder. Na verdade, a função do mito é mascarar realidades e estimular esperanças dos que já não às têm. O mito na política confere a falsa sensação de emprestar certezas onde não há nada que as garanta.
Por outro lado, nem todos os mitos consagrados ou proclamados possuem algo semelhante à figura de um herói. Alguns assim são associados, outros, no entanto, são fabricados por interesses momentâneos, fugazes, para dotar de popularidade a quem não logrou alcançar por seus próprios méritos. Logo, essa diversidade de mitos que a história nos reserva está presente em diferentes situações. Em algumas delas seu papel é caricato. É o que por certo está a acontecer no Brasil de nossos dias.
A razão para discorrer sobre o emprego desse termo é, por isso mesmo, auto-explicativo. Estamos no Brasil sendo submetido a essa excrescência da subversão do uso indevido ou distorcido de uma palavra mal compreendida ou mal aplicada, mas que faz sentido na conjuntura em que vivemos pela predominância de um tempo em que impera a ignorância ingênua ou incentivada para mascarar a realidade dos fatos.
Gostaria de relacionar o mito, assim considerado pela legião de fanáticos do atual presidente com o do fenômeno da cafajestada a imperar no circuito político recentemente. Derivado de cafajeste, que encerra uma ambigüidade, pois serve para designar vários tipos de sedutores que caem no gosto de pessoas fascinadas por sua figura. Porém, também se aplica aos que ludibriam a ingenuidade dos incautos para deles tirar proveito. A cafajestada não é um desvio de caráter coletivo, na verdade é um projeto de grupos que se destinam a explorar a boa fé do povo.
Costumo vez por outra sondar o significado de certos vocábulos. O faço por alguma dúvida quanto ao seu emprego ou por discordar do uso que deles fazem aqueles que o lançam mão para designar pessoas ou situações comuns a todos nós. De um modo geral, cafajeste é um vocábulo que contêm essas nuances variadas, mas nem sempre sua descrição nos ajuda a compreender o seu significado.
Um dia desses consultei no Google a palavra cafajeste, e eis que li o que segue: indivíduo de baixa condição social; pessoa a que não se empresta importância. Mais adiante, uma definição mais comum: pessoa sem caráter, de má índole. E seus sinônimos: canalha, patife, calhorda, tratante, bandido, velhaco, crápula, pulha, ordinário, sem-vergonha, malandro, cínico, e tantos outros que podem ser adicionados a esses adjetivos de cunho pejorativo. Em síntese são pessoas ou grupos de pessoas desprezíveis no conceito formal. Porém, quando agem solidariamente transformam-se em agentes perigosos para a democracia.
Mas, fiquei a refletir sobre a primeira definição, a abrir o conjunto de termos arrolado em seguida para a resposta sobre o que é um cafajeste? Por que estou me ocupando deste vocábulo tão desprezível e normalmente utilizado para diálogos ou caracterizações que nos incomodam? Porque ele tem sido usado, com alguma frequência, para designar a conduta de lideranças políticas, como o de presidente da República, que não se acanha em desferir palavreado chulo, incomum a quem exerce um cargo tão importante. Afinal, quem assim se comporta ao agredir os outros é um cafajeste, e quando se apoia em grupos adentra-se no conceito de cafajestada.
Lembro-me que em minha juventude conheci muitos cafajestes, alguns isolados e outros em atividades ligadas às várias contravenções. Por isso, creio que tenho como compreender esse personagem e sobre eles é possível identificar traços comuns. Assim, para minha tosca experiência o cafajeste é uma pessoa esperta a procurar tirar vantagens no trato com pessoas geralmente ingênuas. Seu caráter é de alguém que não tem qualquer escrúpulo, mesmo se tratando de gente de sua relação de amizade. Ao contrário de que se pensa esse personagem se encontra em várias classes sociais.
O cafajeste é subproduto das relações sociais num mundo de poucas oportunidades a incentivar a transgressão como meio de tirar vantagem.
Neste contexto surgem os tipos a se associarem tal como os chamados milicianos. Ninguém nasce canalha ou velhaco, mas dependendo das circunstâncias de vida pode vir a se envolver com o que chamaria de dribles diante de uma realidade adversa, como uma estratégia de sobrevivência. Ao se sentir vítima vinga-se dessa situação e cobra uma justa reparação, através de trapaças conscientemente arquitetadas. E com o tempo cria sociedades e ocupam espaços ao largo do poder público formal.
Existem também os que foram objeto de censura, punições aparentemente rigorosas ou supostamente injustas segundo seus critérios de avaliação, e que desenvolveram um forte desejo de dar o troco à sociedade ou instância que em algum momento o condenou. Ao tratar desse tema estou pensando em vários tipos que me deparei nos encontros e desencontros da vida. Não poderia deixar de mencionar o mais recente deles a povoar as mentes dos brasileiros ultimamente, não fosse ele aquele tipo que ludibriou a ingenuidade e a boa fé de inúmeros compatriotas nas últimas eleições presidenciais. Seus adversários tinham outras características, algumas simplórias, outras até folclóricas, mas nenhum deles próximo do tipo em questão.
Jair Messias Bolsonaro não possui intercorrência de desvio de conduta, ao que se sabe. Salvo erro, ele é uma personalidade que adquiriu o vício de enganar os outros para satisfazer interesses e satisfações de modo a alcançar seus propósitos. Daí lançar mão de mentiras recorrentemente uma vez que não dispõe de argumentos lógicos para fazer valer suas confusas e inconseqüentes proposições. É um perfeito rufião na arena política, porque distorce os dados de realidade para o seu público e despreza o contraditório, usando sempre a agressão e a violência verbal.
O cafajeste usa a esperteza para ludibriar os outros, mas ele não é um esperto. Ao contrário, ele mesmo reconhece que é um perdedor e reage a essa situações de quem sofreu derrotas para vingar-se daqueles que considera terem sido mais bem aquinhoados pela vida. E isso na política costuma conduzir esses personagens para práticas autoritárias. A história tem inúmeros registros, de maneira que associar os regimes violentos e repressores a personagens movidos pela permanente obsessão em confrontar com quem julga inferior a eles produz regimes necessariamente antidemocráticos, não importa a ideologia que ostentem.
Livrar-se desses tipos não é fácil. Voltando às minhas memórias, os tipos cafajestes que tive ocasião de me deparar tinham uma capacidade de convencimento e assim eram aceitos, não obstante os reparos que a eles se faziam. Atitude, que por sinal, jamais era correspondida pelos cafajestes e seus truques para levarem vantagens sobre tudo e sobre todos, pois procuravam estar acima dos que o cercavam, às vezes até com admiração. Afinal, a esperteza é uma burla, que só uma sociedade que prima pela desigualdade social produz em grande escala essas condutas, e para esse fim adota como meio a ilusão do sucesso, não importa se à custa do próximo.
O cafajeste burla as convenções e, principalmente, a ética. Ele as despreza porque são entraves convencionais que acabam por ser apreendidos pelo cidadão que acata tais convenções. Ao deixá-las de lado, o cafajeste se sente livre para operar as suas traquinagens na certeza da impunidade, exatamente pela crença de que essas barreiras não as atinge.
Afinal, ele se considera dotado de recursos acima dos incautos. Ora pela malandragem ou pela perícia em envolver o alvo de suas ações. Ele é esperto, assim se julga. Mas essa suposta condição pode vir a ser o seu mais rotundo fracasso em virtude de o fato encerrar o excesso de segurança, que lhe sobe a cabeça e o leva ao desatino, ao deslumbramento que dura pouco.
Diante do exposto respondo ao Google: a baixa condição social só pode ser entendida como a negação da sociabilidade, nunca à associação com as chamadas classes subalternas. Estas já são carentes de tudo, não precisam ser mais desqualificadas.
Por outro lado, dizer que o cafajeste é alguém a quem não se dá importância é falso. Em geral, são eles que costumam fascinar a ingenuidade de pessoas pouco afeitas. Elas costumam observar as falácias banais de quem só deseja tirar proveito para locupletar sua grande família.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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