Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva para a Tribuna da Imprensa Livre, a compositora Michelle Agnes Magalhães afirmou: “As mulheres sempre criaram, sempre escreveram música mesmo em períodos em que essa atividade não era reconhecida socialmente destinada a mulheres. Nesse sentido existe uma atualização a ser feita, outras versões da História a serem contadas, toda uma discussão sobre a questão da representatividade.” Ao ser questionada a respeito de seus estudos/pesquisas sobre a obra do cineasta soviético, Dziga Vertov, a compositora respondeu:
“Toda a obra de Dziga Vertov merece ser vista e ouvida hoje, pela sua inventividade que vai além das questões políticas da época. Sua vontade de incluir a construção sonora e de elevá-la ao mesmo nível da pesquisa visual, (tudo isso no início dos anos 30!) me impressionou muito. Muito antes da música concreta ele havia elaborado uma maneira estética de construir com materiais documentais – sons e imagens do cotidiano.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?
Michelle Agnes Magalhães: Eu prefiro “música” simplesmente. As práticas musicais atuais são bastante diversificadas, e tem sido muito fascinante vivenciar essa heterogeneidade que muitas vezes resiste à classificação. Tenho me sentido bastante próxima à uma prática que evidencia o fenómeno perceptivo, a recepção sensorial da música maneira global envolvendo também o elemento visual, táctil e tudo que pode ser associado à escuta musical.
Prestes Filho: Música Eletrônica, Música Eletroacústica ou Música Acusmática?
Michelle Agnes: Creio que é uma questão de contexto histórico no qual a criação musical se insere e de filiação também. Todas essas experiências envolvendo meios eletrônicos modificaram nossa percepção e inevitavelmente foram assimiladas pela escrita instrumental. Elas moldaram também a nossas ferramentas de composição. No meu caso tenho buscado uma integração e o que me interessa é ter uma diversidade de meios disponíveis que possam enriquecer o processo de composição, o chamado “atelier”. Hoje minha produção se situa mais no campo da chamada música “mixta”: recursos instrumentais e eletrônicos caminhando de mãos dadas, por vezes se influenciando, outras vezes ressaltando suas especificidades.
Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem na música? Você disse recentemente que hoje reconhece que o “Brasil foi mais importante do que imaginava” e que “a formação no Brasil ajudou a você perceber a música como um fenômeno social”. Em quais de suas obras encontramos o Brasil, sua origem, seu chão? Na “Dialética do Cajú”, uma obra realizada para piano e sons eletrônicos?
Michelle Agnes: Isso se tornou bastante claro para mim depois de alguns anos morando no exterior. A influência dos encontros que tive durante a minha formação no Brasil permeia, sem dúvida, toda a minha produção. Essa influência vêm também da diversidade (no que tange à abordagem, sentido, estilos, origens das práticas musicais no país) e dos deslocamentos (o modo como uma prática é influenciada por uma outra, se reinventando e abrindo caminho para interpretações).
Prestes Filho: Tenho formação em direção de filmes documentários, pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética. Por esta razão, a sua tese de mestrado “Música, Futurismo e a Trilha Sonora de Dziga Vertov” me chamou a atenção. Você estudou um filme marcado pelo estilo artístico oficial da URSS, o realismo socialista: “Entusiasmo, Sinfonia de Donbás” (1931). As músicas de Timofeev e de Shostakovich, respectivamente, “A Sinfonia de Donbás” e “A Sinfonia de Primeiro de Maio”, são obras que merecem serem ouvidas hoje? Vertov, Timofeev e Shostakovich marcaram sua formação?
Michelle Agnes: Sim, toda a obra de Dziga Vertov merece ser vista e ouvida hoje, pela sua inventividade que vai além das questões políticas da época. Sua vontade de incluir a construção sonora e de elevá-la ao mesmo nível da pesquisa visual, (tudo isso no início dos anos 30!) me impressionou muito. Muito antes da música concreta ele havia elaborado uma maneira estética de construir com materiais documentais – sons e imagens do cotidiano.
Vertov é também um pioneiro em relação ao meiostecnológicos desenvolvidos para os seus projetos na URSS. A poesia e a grande liberdade da sua escrita audio-visual, que preserva a autonomia dos elementos visuais e sonoros assim como sua sua polifonia são para mim uma grande fonte de inspiração.
Prestes Filho: Quem acompanha sua trajetória encontra obras como “Cine-Concerto: Brecht e Beckett no Cinema”; a experiência de acompanhamento, ao vivo, do filme de Febo Mari; a trilha para o filme “Primavera”, de Maurício Osaki; e muitos e muitos outros trabalhos. O cinema é uma expressão artística que potencializa a sua invenção? Como o cinema está para a arte da composição?
Michelle Agnes: O contato com esses cineastas foi toda uma escola para mim. Foi o prazer de acompanhá-los em todas as etapas de criação, desde a batalha quotidiana para conseguir o financiamento para os projetos até a fase de finalização, a capacidade de administrar todo um trabalho coletivo me ensinou muitas coisas. Podemos fazer muitos paralelos com a composição, a abstração e formalização do roteiro que é uma espécie de partitura, a montagem pode ser comparada também à um tipo de escrita.
Esta última exerce um certo fascínio sobre mim, principalmente em relação ao agenciamento do tempo, ao ritmo visual.
Prestes Filho: O piano tem espaço central na sua obra. Conte sobre sua formação e estudo do piano. Muitas de suas composições são feitas para as cordas deste instrumento. Será que por esta razão você é autora de obras para harpa?
Michelle Agnes: O piano é minha paixão desde os 6 anos de idade. Depois veio a descoberta do repertório e de todas as possibilidades de preparação, provocar harmonicidades, diferentes afinações. Sim, a experiência direta com as cordas, e a vontade de continuar esta exploração me levaram a incluir a harpa na instrumentação de “Jogo e teoria do duende” e “Lorca Fragments”. As diferenças também começaram a aparecer, a harpa é um instrumento no qual abafamos os sons com as mãos, esta maneira de tocar condiciona muito a escrita e cria também efeitos de timbres, uma “ritmicidade” que me interessa muito.
Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores de Música Eletroacústica que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tem importância estruturante para sua formação.
Michelle Agnes: Um primeiro encontro bastante marcante para mim foi com o professor Eduardo Gramani na semana de música de Campo Grande (MS) em 1992. A forma como ele compreendia o ritmo, nos fazia dançar, mover, e como inventava as suas poliritmias continua a me influenciar até hoje. Dois anos depois fiz uma viagem à Londrina que decidiu todo o meu futuro. Eu tinha 14 anos, morava ainda em Campo Grande e me inscrevi em todos os cursos ministrados por H. J. Koellreutter (composição, análise, harmonia e estética), de maneira condensada tive minha introdução à composição.
Foi também nessa ocasião que encontrei tantos amigos que foram diretamente responsáveis pela minha trajetória: Janete El Haouli, Valério Fiel da Costa e em especial André Luiz Gonçalves de Oliveira, um amigo compositor-filósofo que continuou a me instigar durante anos por correspondência.
Meu professor de piano Evandro Higa, fundador do Centro de Arte Viva em Campo Grande foi também importantíssimo. Ele me abriu as portas para o repertório dos séculos XX e XXI de modo muito natural, me transmitia as novidades de João Guilherme Ripper, me mostrava que um futuro como compositora era possível. Eu estava atravessando a adolescência, me preparando uma mudança para longe para prosseguir os estudos. A confiança que todas essas pessoas me transmitiram alimentaram meus sonhos, me fizeram superar uma série de dificuldades. Depois vieram vários cursos com compositores muito diferentes que encontrei durante o bacharelado na Unicamp (Almeida Prado, Livio Tragtenberg, Denise Garcia, José Augusto Mannis, Jônatas Manzolli) e o doutorado na USP (Fernando Iazzetta, Silvio Ferraz). Depois fui descobrindo também os compositores do Rio, graças ao meu amigo compositor Alexandre Fenerich (Mariza Resende, Rodolfo Caesar com quem até pude fazer uma parceria!).
Em 2013 me mudei para a França e tive um encontro muito importante com a compositora Chaya Czernowin. Nela reconheci uma força, uma artista completa que não dissocia criação e técnica no seu modo de fazer e de ensinar. Ela foi também uma das responsáveis por eu ter continuado nessa via, num momento em que eu estava dividida entre várias atividades. Mais uma vez, como na minha adolescência a composição se abria como um mundo.
As aulas de Salvatore Sciarrino, sua leveza, sua visão humanista e seu lado hedonista veio complementar essa formação.
Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar? Poderia citar os artistas brasileiros e estrangeiros da atualidade?
Michelle Agnes: O universo da música hoje é bastante rico, muitas vezes as descobertas se dão por acaso, encontros casuais. Gosto dessa ideia porque aprecio muito a diversidade, a variedade na criação, então não me interesso por correntes específicas. Não seria capaz de fazer uma lista exaustiva nessa entrevista, mas existem muitos compositores atuais que têm estimulado minha vontade de criar como Giulia Lorusso, Julien Malaussena, Louis Bona, Flora Holderbaum, Fernanda Navarro, Marcos Balter, Sérgio Rodrigo, Elżbieta Sikora, Valéria Bonafé, Diana Soh, Margareta Ferek-Petric, Mauro Lanza, Pascale Criton, Bernardo Barros, Patricia de Carli, Luciano Leite Barbosa, Grégoire Lorieux e muito(a)s outro(a)s.
Prestes Filho: A interseção audiovisual/teatro/música hoje é uma realidade. Em especial, por conta da atual revolução científica e tecnológica que está transformando todas as áreas da cultura. Qual é o impacto da mesma na música contemporânea?
Michelle Agnes: O impacto é sempre grande e essa associação da música com outras artes é bastante antiga. Acho particularmente interessante o diálogo entre música e neurociências, especialmente o conceito de cérebro musicista, a maneira de a analisar o fenômeno musical para além do julgamento estético e sobretudo de reconhecer a música como uma necessidade vital. Não saberia como descrever o impacto das tecnologias hoje de maneira global.
No meu caso a parceria com Frédéric Bevilacqua, músico e cientista que dirige a equipe Interação Som Música e Movimento do IRCAM, assim como as residências artísticas que fiz no mesmo instituto me impulsionaram a criar uma música com aberturas para a interação (utilizando sensores de movimento) e um dispositivo baseado na síntese concatenativa. Essa utilização vai sempre no sentido de utilizar as ferramentas tecnológicas para criar um terreno mais flexível e oferecer ao intérprete uma maior liberdade interpretava.
No meu último trabalho (Lighter than air II para quarteto de cordas e eletrônica) busco também oferecer a um grupo de dançarinos a possibilidade de interagir musicalmente, de participar da organização sonora da peça, de interferir na duração e no fraseado de todo um movimento do quarteto.
Na série Constella(c)tions o público também é convidado a interagir utilizando tecnologias móveis como telefones celulares.
Prestes Filho: Em 2018 o Talea Ensemble, apresentou concertos da sua obra “Herbarium” nos EUA. Este trabalho marcou a sua exitosa passagem pela Universidade de Harvard. Você deu vida musical a uma coleção de flores secas. Outra vez na sua obra a imagem dando origem a música? Este trabalho indicou novos caminhos? Para você desenhos, fotografias, artes plásticas, colagens e maquetes feitas no computador servem de matérias primas para o desenvolvimento de sua música?
Michelle Agnes: Sim esse trabalho foi inspirado pela obra e pela maneira de escrever de Emily Dickinson. Ela escrevia em fragmentos de cartas e envelopes e tinha também uma coleção de folhas e flores secas prensados em um caderno, um Herbarium. Foi durante a minha residência em Harvard que tive contato com esse material que faz parte da coleção Emily Dickinson da Houghton Library. Acho que a construção visual desses trabalhos foi mais um modelo, do que uma matéria prima. A liberdade em relação aos espaços em branco, à pontuação, o papel foram estímulos que me resultaram em “descobertas” formais para mim.
A partir dessa experiência comecei a combinar técnicas e passar livremente de um meio a outro de acordo com as necessidades do momento.
Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a presença das mulheres em atividades musicais? O número de compositoras na Academia Brasileira de Música (ABM) é muito pequeno. Seria possível uma reflexão sobre este tema?
Michelle Agnes: As mulheres sempre criaram, sempre escreveram música mesmo em períodos em que essa atividade não era reconhecida socialmente destinada a mulheres. Nesse sentido existe uma atualização a ser feita, outras versões da História a serem contadas, toda uma discussão sobre a questão da representatividade.
Sem falar que, poucas mulheres ocupam cargos de direção em Festivais, Escolas de Música, Instituições. Enquanto isso não mudar continuaremos a ser minoria, tanto nas artes quanto nas ciências também.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
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