Por Jorge Folena –
A questão do acesso à memória, no que diz respeito a acontecimentos da vida privada versus fatos da vida pública, tem dinamizado importantes discussões, seja no campo da política, da comunicação social, da editoração de livros e na rede mundial de computadores.
O debate sobre a preservação da memória ou a prevalência do esquecimento pode ser sintetizado pelas manifestações de Walter Benjamin, para quem “os mortos têm direito sobre nós, uma vez que, do ponto de vista deles, somos as futuras gerações”, e Max Horkheimer, que defende que “os mortos estão mortos e não podem ser despertados”.
A jurisprudência construída no Supremo Tribunal Federal (STF) tem se encaminhado para o respaldo ao direito à memória, sendo vedada qualquer forma de censura, como ressaltado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.815 (relatora do processo, ministra Carmen Lúcia), quando foi decidido que:
“A Constituição do Brasil proíbe qualquer censura. … O direito de informação, constitucionalmente garantido, contém a liberdade de informar, de se informar e de ser informado. … Biografia é história. … Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa. O risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se cortando liberdades conquistadas.”
No julgamento do Recurso Extraordinário número 1.010.606 foi fixada a seguinte tese, com repercussão geral: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível” (tema 786).
A propósito, vale salientar que, mesmo sob a análise do regime constitucional anterior a 1988, o STF vinha consagrando o respeito ao direito à memória e a sua prevalência até mesmo sobre o direito de propriedade: “…limitação genérica, gratuita e unilateral ao exercício do direito dos proprietários, em prol da memória da cidade, que tem base no parágrafo único do artigo 180 da Constituição da República. Recusa de autorização para demolição que não importa afronta ao direito de propriedade.” (Recurso Extraordinário número 114.468, rel. ministro Carlos Madeira, julgado em 31/05/1988).
“Prédio urbano elevado à condição de patrimônio cultural. Decreto Municipal 7.046/87. Legalidade. Limitação administrativa genérica, gratuita e unilateral ao exercício do direito de propriedade, em prol da memória da cidade. Inexistência de ofensa à Carta Federal.” (Recurso Extraordinário número 121.140, relator ministro Maurício Corrêa, julgado em 26/02/2002).
No julgamento do Recurso Extraordinário 593.818, ocorrido em 18 de agosto de 2020, relatado por Luís Roberto Barroso e com repercussão geral reconhecida (tema 150), afastou-se o esquecimento em matéria criminal para majoração de pena: “Não se aplica para o reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no art. 64, I, do Código Penal”.
Nesse passo, considero ainda importante salientar que o STF, no julgamento realizado em 16/03/2017, na Reclamação 11.949/RJ, a relatora, ministra Carmen Lúcia, analisando a negativa do Superior Tribunal Militar de tornar público o conteúdo dos julgamentos secretos ocorridos durante a ditadura militar, manifestou que: “o direito à informação, a busca pelo conhecimento da verdade sobre a sua história, sobre os fatos ocorridos em período grave contrário à democracia, integra o patrimônio jurídico de todo cidadão, constituindo dever do Estado assegurar os meios para o seu exercício”.
Ainda que envolvam delitos praticados, e diante da repercussão política e social dos acontecimentos, é direito da sociedade saber quem os praticou e como os praticou, a fim de se evitar posicionamentos rejeitados pela Constituição e contrários à democracia, como a defesa da tortura e de torturadores, a apologia ao estupro e a violações aos direitos humanos; ou comentários que buscam naturalizar o abuso e o trabalho infantil, e até mesmo a prática odiosa do racismo, como se tem visto no Brasil.
Sendo assim, não se pode jogar ao esquecimento nem impedir a divulgação dos envolvidos nos delitos de grande repercussão, relativos a violações dos direitos humanos, aos quais deve ser dado amplo conhecimento, para que sejam repelidos pela sociedade, uma vez que “no estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável”, como decidiu o Plenário do STF, no julgamento do HC 82.424, relator para o acórdão Min. Maurício Corrêa, julgado em 17/09/2003.
A opção pelo esquecimento das graves violações aos direitos humanos ocorridas durante as ditaduras no país (1937-1945 e 1964-1985) atua como alimento do ódio, que incentiva o retorno despudorado das mesmas práticas destrutivas, como estamos observando nos dias atuais, mediante os ataques sistemáticos aos índios, aos negros (ações policiais em comunidades faveladas), à população LGBTQIA+, às mulheres e às crianças; comportamentos que possibilitam o genocídio, desrespeitam a pluralidade e nos afastam cada vez mais de uma ordem verdadeiramente democrática.
Quando um determinado grupo insiste em convalidar a negação da humanidade do outro, do alter, do supostamente diferente, de modo a justificar seu aniquilamento, é porque seus integrantes já perderam qualquer resquício de humanidade e defendem o retorno à barbárie. E na barbárie não existe a possibilidade de se construir efetiva democracia.
Por fim, diante da evolução da jurisprudência do STF, no reconhecimento da memória, é necessário que a Corte reveja a sua decisão no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental número 153, que manteve a lei de anistia (lei 6.683/1979), representativa de um indevido esquecimento da memória nacional sobre os graves delitos contra os direitos humanos praticados na última ditadura (1964-1985).
JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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