Por João Batista Damasceno

As investigações do Caso Marielle precisam conceber a possibilidade de ter sido o atentado articulado por forças que pretendiam implantar o caos para se apresentarem como garantidoras da ordem.

O atentado à Marielle Franco suscita inquietação em todos os se preocupam com a construção da democracia e com o Estado de Direito no Brasil. A compreensão dos interesses que podem ter motivado sua execução e ocorrências anteriores podem ser o fio da meada capaz de desembolar o novelo.

O atentado ocorreu no 26º dia após a intervenção federal no Rio de Janeiro. O interventor era o general Braga Netto e o Secretário de Segurança Pública o general Richard Nunes. A intervenção federal fora decretada no dia 16/02/2018 e o atentado em 14/03/2018. O general Braga Netto era o Comandante Militar do Leste, conhecia o Rio de Janeiro e suas dinâmicas. Em 01/04/2014, em razão de GLO, ocupara a Maré com tropas e blindados, dando sequência à política de ocupação militar das favelas.

Braga Netto, em Brasília (Reprodução)

É possível relacionar o atentado à Marielle com o Caso Riocentro. Desde 2015 evidenciaram-se movimentações de forças político-militares visando ao desmantelamento dos valores democráticos. A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada para apurar os atos de violação aos direitos humanos durante a ditadura empresarial-militar, deixara a gorilada em polvorosa. O relatório, publicizado em dezembro de 2014, com os crimes praticados nos quartéis acirrara os ânimos e opusera a caserna à Presidenta Dilma Rousseff. O Comandante do Exército, general Villas Bôas, autorizara seus subordinados a se manifestarem publicamente, encerrando o ciclo do silêncio.

Iniciando o quadro de eloquência, o comandante militar do Sul, general Mourão, concedeu longa entrevista numa TV gaúcha. Em seguida, no CPOR de Porto Alegre, falou que “a mera substituição da Presidente da República não trará uma mudança significativa no ‘status quo’, mas a vantagem da mudança seria o descarte da incompetência, má gestão e corrupção” e pediu o “despertar da luta patriótica”. Encorajados por suas declarações, seus comandados, em Santa Maria/RS, prestaram homenagem ao Coronel Brilhante Ustra, acusado de tortura. O golpe estava em curso.

O General Villas Bôas fazia o papel de militar-legalista e os que autorizados por ele se manifestavam eram apresentados como militares-rebeldes. No dia 27 de fevereiro, onze dias após a intervenção no Rio de Janeiro e quinze dias antes do atentado à Marielle, o interventor Braga Netto, em entrevista, disse que a intervenção era uma espécie de laboratório para outros Estados. “O Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil”, disse. No dia seguinte o general Mourão despediu-se do Exército e, em discurso, chamou o coronel Ustra de “herói”. Em entrevista, o general Mourão disse que “A intervenção no Rio de Janeiro é uma intervenção meia-sola. O Braga Netto é um cachorro acuado, no final das contas. Não vai conseguir resolver o problema dessa forma”. O general disse que o Judiciário deveria “expurgar da vida pública aquelas pessoas que não têm condições de participar”.

Quem mandou matar Marielle Franco? (Marcelo Sayão/EFE)

Antes, em palestra promovida pela maçonaria em Brasília o general Mourão dissera que seus “companheiros do Alto Comando do Exército” entendiam que uma “intervenção militar” poderia ser adotada se o Judiciário “não solucionar o problema político” do país. Isto talvez explique o twitter do general Villas Bôas às vésperas do julgamento, no STF, do habeas corpus impetrado em favor do presidente Lula. A fala do general Mourão acusava a existência no seio militar de forças contrárias à ordem democrática e capazes de tentar uma intervenção, como muitas ocorridas ao longo da República. Os atos de 08 de janeiro deste ano apenas coroaram uma escalada antidemocrática na esteira de manifestações anteriores, dentre as quais, as de 31 de julho e 07 de setembro de 2022, querendo o adiamento das eleições presidenciais.

As investigações do Caso Marielle precisam conceber a possibilidade de ter sido o atentado articulado por forças que pretendiam implantar o caos para se apresentarem como garantidoras da ordem, em prejuízo da democracia e das liberdades públicas. Além dos executores, é preciso investigar quem foram os articuladores do atentado, bem como os intermediários mantenedores recíproca relação com milicianos e com forças obscuras dos quartéis.

A cogitação de colocação de bomba no gasômetro do Rio de Janeiro na ‘hora do rush’, para matar milhares de trabalhadores e colocar a culpa nos comunistas, e o Caso Riocentro são demonstrativos do que fazem os que tramam contra as liberdades públicas. Se no passado os algozes da democracia empregavam suas tropas para execução dos serviços sujos, hoje podem usar terceirizados, como ocorre nas guerras, a exemplo da Guerra do Iraque, onde atuaram empresas privadas com seus mercenários, contratadas pelos EUA para fazer a guerra por eles.

Riocentro. Bomba matou sargento que era agente do DOI-Codi (Reprodução: Agência O Globo / Anibal Philot/30-4-1981)

Se havia forças que pretendiam a intervenção nas instituições e garroteamento da democracia, do Estado de Direito e das liberdades estas podem ter tentado implantar o caos. O general Braga Netto, interventor no Rio de Janeiro, tinha à sua disposição todo o aparato de investigação, espionagem e de segurança federal e estadual, mas sequer recebeu os familiares da Marielle. A notícia de que a arma utilizada era do BOPE reforça a ideia de uso do aparato estatal para o crime.

É preciso esclarecer quem foram os executores do atentado. Mas igualmente quem planejou e quem pode ter intermediado a contratação dos assassinos. Este pode ser o começo de um desvelamento a indicar a necessidade de fazermos o que não foi feito ao fim do regime empresarial-militar: a justiça de transição, com responsabilização pessoal e institucional dos que atentaram contra o povo brasileiro.

Não podemos permitir que os vermes que se alojam nos porões, de vez em quando, saiam para assombrar as liberdades públicas.


AGENDA

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.

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