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Marias da Favela
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Marias da Favela

Por Herédia Alves –

“Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”.
(Maria, Maria – Milton Nascimento)

Importantes conquistas marcaram os 15 anos da Lei Maria da Penha, dentre elas a inserção do crime de violência psicológica no Código Penal, através da promulgação da Lei 14.188/2021 que trouxe grandes avanços no tocante a defesa das mulheres.

Entretanto não podemos olvidar que o isolamento imposto pela Covid-19, culminou com o aumento dos casos de violência doméstica, feminicídio e violações de direitos humanos aos quais mulheres foram expostas devido a necessidade de estar mais tempo junto com o agressor.

Dentro das favelas os dados são subnotificados e o acesso a rede proteção social são escassos, evidenciando o recorte de classe e de cor, nesses territórios de vulnerabilidade social. Onde mulheres pretas e faveladas que gritam por socorro certamente não serão atendidas pela patrulha Maria da Penha.

Diante da ausência do Estado, muitas das vítimas recorrem aos chefes do tráfico que dominam “seus guetos”, determinam a solução e promovem a proteção, o que resulta num inevitável e previsível ciclo de violência ainda maior, tendo em vista as regras punitivistas impostas pelo poder paralelo que vigora nessas áreas.

Cristina moradora do Salgueiro na Tijuca relatou que mesmo após ser arrastada pelos cabelos dentro da comunidade, não iria registrar ocorrência contra o agressor. “Não posso trazer a polícia aqui pra dentro doutora, senão eles raspam a minha cabeça, preciso arrumar um lugar pra eu ir com meu filho”.

O recorte de classe e cor evidencia que não falta eficácia a Lei Maria da Penha, mas sim efetividade de políticas públicas que assegurem o direito dessas mulheres serem efetivamente ouvidas, assistidas e protegidas de alguma forma, mesmo sendo moradoras, de um recorte geográfico marginal à sociedade, de áreas esquecidas pelo Estado, espaços favelizados ou áreas dominadas por milicianos.

Segundo relata Neide, moradora da Penha quando sua patroa foi espancada pelo marido a polícia foi acionada e chegou ao local em menos de 10 minutos, o agressor foi detido e a vítima levada a uma delegacia de mulheres. Ela que sempre apanhou do marido nunca foi assistida pois sabia que nada aconteceria com ele dentro do Complexo da Penha.

A favela do Morro da Coroa, com o Cristo Redentor ao fundo. (Mauro Pimentel/AFP)

Nesse contexto, fica claro que os dados sobre violência doméstica no Estado do Rio de Janeiro, não retratam a realidade vivida pelas mulheres pretas, pardas ou brancas, que vivem dentro das favelas cariocas, escancarando a seletividade que a proteção da lei traz e realçando que a branquitude burguesa dispões de maior proteção e assistência por parte do Estado.

A interseccionalidade é uma ferramenta capaz de debater as questões raciais que norteiam esse tema. Precisamos debater a invisibilidade vivenciada dentro das comunidades por milhares de mulheres diariamente, assim como os recortes classe e raça que permeiam essas vivências e são desprezadas pelos entes públicos e que insistem em tratar esse tema de forma generalizada, sem levar em conta as particularidades que se apresentam.

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais (AKOTIRENE, 2019, p.19).

Não obstante, traçar o perfil dessas vítimas e agressores é de extrema importância, tendo em vista as peculiaridades dos locais onde as violências ocorrem. Ressaltando traumas provocados em casos de violência praticados nesses ambientes, já que as agressões se dão de forma contínua, frente a falta de meios eficazes no combate a violência contra mulher, coleta de dados e de informações fidedignas e apoio.

Cumpre ressaltar, a necessidade de um trabalho multidisciplinar, tendo os profissionais de saúde como um dos principais agentes capazes de trazer informações nesse cenário, já que as vítimas recorrem aos postos de saúde locais em situações de violência, em busca de auxílio médico, entretanto na maioria das vezes omitindo os reais motivos que ensejaram os ferimentos.

A heterogeneidade feminina precisa ser respeitada e ressaltada, para construirmos políticas públicas de combate a violência contra a mulher que ampare e atenda todas as áreas do Estado, independente da cor ou classe social, trazendo a tona dados reais que norteiem as peculiaridades que esse tipo de violência possui e tirando da invisibilidade essas mulheres que vivem em situação de extrema vulnerabilidade.

HERÉDIA ALVES é a titular desta coluna, advogada Criminalista e do Terceiro Setor, especialista em Direito Público, diretora de Projetos do Instituto Anjos da Liberdade, presidente Estadual do Instituto Nacional de Combate a Violência Familiar, advogada da Associação de Moradores da Vila Mimosa e membro da Comissão de Direitos Humanos OAB/ RJ.


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