Por Lincoln Penna

Esperança é a motivação para escrever essas linhas.

Precisamos dela para garantir a realização do sonho de um país que permita que todos os seus cidadãos usufruam da prosperidade que é possível alcançar. Porém, os fatos que vêm se acumulando dia após dia não nos permitem alentos maiores. Tem predominado mais a constatação de um caos anunciado do que as mudanças que nos permitam conduzir às grandes e necessárias transformações de nossa realidade.

Mesmo assim a teimosia por vezes é uma companheira inseparável e é bom que se dê corda a ela diante de tantos descalabros havidos e previstos. Já se disse alhures que as adversidades costumam excitar as nossas defesas e uma vez retemperados somos capazes de enfrentá-las, mesmo com eventuais revezes passageiros.

De revezes prolongados estamos fartos. Mas, nunca é demais tecer pacientemente os fios da esperança. Afinal, o DNA de nosso povo mesclado de etnias e culturas notabilizadas pela resistência às seguidas opressões nos dão a certeza de que é possível reunir as condições para se reverter as derrotas e amarguras que trazemos em nossa história.

Não existem fórmulas vencedoras que nos possam conduzir a superações de que necessitamos. Todavia, é possível refletir sobre algumas atitudes indispensáveis para que se saia dessa condição de eternos perdedores, exceção do andar de cima de nosso edifício social. E uma dessas atitudes, sem dúvida, é a de alimentar a crença de que nada é definitivo. Logo, se a realidade é desalentadora ela não permanece assim indefinidamente. Cabe enfrentá-la com determinação e superá-la.

Não hesitaria em reproduzir a famosa sentença do ícone da administração moderna, Peter Drucker, ou a ele atribuída, segundo a qual, “a melhor forma de prever o futuro é criá-lo.” No caso do Brasil a criação de um futuro passa pela ação política bem sucedida, lastreada por uma convergência democrática e programaticamente estruturada e sempre respaldada pelas classes mais espoliadas a quem se deve uma enorme dívida social.

Mas, antes de passarmos para outras atitudes que cabem nesse momento, convém lembrar o cenário sobre o qual estamos examinando. Traduzindo esse cenário ou panorama para os fatos concretos da vida política brasileira constatam-se três coisas: desmontar a ilusão de uma soberania inexistente; fomentar as grandes manifestações de nossa cultura artística, literária e as culturas dos povos originários; e, finalmente, ter consciência de que somos capazes de exercer um papel de grande valia junto com os demais irmãos latinoamericanos, abertos a novos experimentos de sociabilidade continental e internacional.

Essas atitudes se dirigem ao nosso povo sem eira nem beira, mas não às nossas elites dominantes. Estas, ao contrário, estão revestidas de uma armadura contra toda e qualquer inovação no que diz respeito a mudanças comportamentais no seio das relações sociais. São fundamentalmente ultraconservadoras e hoje em dia se encontram não apenas no controle econômico como sempre estiveram, como na representação política e em seus diversos cargos, sobretudo na presidência da República, desfigurando-a por completo. Reveladora antítese que se expressa de maneira cristalina nessa sociedade profundamente desigual.

Os resultados eleitorais de 2018 deram vitória a um candidato que não economizou manifestações explícitas em favor da ditadura e dos ditadores e torturadores, e na presidência reforça o seu discurso contrário a todos os princípios democráticos. E mesmo assim, tem contado com apoio de uma parcela considerável de um eleitorado que pensa como ele, ajudado que foi na eleição que o tornou presidente com a pauta anticorrupção.

Não é um caso atípico de um eleitor (a) transtornado (a) episodicamente, que consagrou as teses mais reacionárias. Trata-se de um contingente que reflete de forma estridente o seu desprezo pelos valores democráticos, de convivência com a pluralidade e a tolerância, ambas indispensáveis ao convívio civilizado de uma sociedade que preza pelos valores humanitários e civilizatórios. O eleito deu nome a essa malta irracional e disposta a tudo. Nascia, assim, o fenômeno político do bolsonarismo.

Essa imagem distorcida do brasileiro nesses anos de intolerância instigada e provocada pelo presidente tem maculado a tradição do país no concerto internacional. Julga-se predestinado à destruir o legado democrático com base numa suposta defesa contra os seus oponentes e transtornado não mede palavras e atitudes que o distanciam do brasileiro e de sua tradição gregária e hospitaleira.

Todavia, os representantes do mundo do trabalho, estão prontos para desmascarar essa falsa e abjeta liderança que hoje ocupa a presidência.

Há uma perversidade que nos acompanha. Tendo sido o país que por último aboliu a escravidão, só na formalidade do papel, esse mesmo país jamais superou o fardo escravocrata a permanecer presente em nosso cotidiano. Tanto a modernização da sociedade brasileira acompanhada pela modernidade no que respeito à aquisição de valores civilizatórios oriundos alguns deles de uma maior acessibilidade a novos inventos e eventos culturais, não foram suficientes para remover o entulho conservador de cunho autoritário no seio de uma população de vários fragmentos sociais retalhados nas acomodações de uma conciliação que vara séculos e se mantém impermeável a mudanças.

Nesse quadro de permanências, outras atitudes além da já mencionada anteriormente devem ser objeto dessa análise. A segunda atitude é a conseqüência de certa forma da primeira, isto é, a ausência de uma real soberania. Trata-se da atitude de subserviência, demonstrada mais recentemente e de maneira inequívoca por Bolsonaro quando de sua visita ao então presidente Trump nos EUA. Ela condiz com o que pensa de um modo geral as classes médias brasileiras, que vêem naquele país uma espécie de modelo para o seu incerto futuro. Essa gente se espelha em uma sociedade cuja ostentação se fez à custa da agressão a outros povos, respeitado o valor do trabalho do povo daquele país, que nada tem com os seus dirigentes também.

Subserviência que está em todos os lugares e comportamentos quando nos deparamos com o estrangeiro de preferência bem sucedido no que respeita ao capitalismo de alto coturno. Não faz muito tempo e todas as mercadorias que tivessem as marcas de fabricação fora do país eram consideradas superiores às brasileiras. Muitas vezes eram mesmo, mas a simples manifestação dessa superioridade como se fosse chancela de valor não deixava de refletir essa condição de sociedade inferior e subalterna.

Como terceira atitude, vale à pena registrar, da mesma forma que as anteriores, a consciência de perdedor, de povo de segunda classe diante da exuberância e riqueza de outros povos. Essa atitude ou “ complexo de vira lata”, consagrada pelo dramaturgo Nelson Rodrigues nos acompanha faz tempo, e em todos os níveis e formas de manifestação do brasileiro. E ele condiz com o que suas classes dominantes pensam de seu povo. Ou melhor, do povo que elas têm de suportar porque dependem de sua força de trabalho para prover a acumulação de suas riquezas e recursos materiais.

Ter consciência de que temos sido objetos dessa condição que nos levou a uma baixa autoestima, é de suma importância para que reunamos plena convicção de que só encarando essa dramática situação podemos superá-la.

Acordados e dispostos a ir à luta pela dignidade como povo é que podemos reunir a condição necessária para nos tornarmos protagonistas de nossa caminhada na história. O sonho acalenta, mas não resolve uma situação que foi historicamente construída e nos levou à situação em que nos encontramos a mirar em exemplos externos e desprezarmos as nossas próprias energias e capacidades de dar a volta por cima.

Assim, temos pela frente duas tarefas a serem empreendidas. Uma que se refere à eliminação de nosso contencioso colonial, neocolonial e escravocrata com as implicações que todos conhecemos. Tarefa que deve mobilizar todas as forças produtivas e comprometidas com a criação de nosso futuro tão tardiamente adiado; a outra, a de se conceber um projeto de país inclusivo, de modo a contemplar todas as demandas que se acumulam por várias gerações. Logo, é uma tarefa de cunho também político e que precisa ser implantada nos corações e mentes de nosso povo mais sacrificado.

No entanto, nada acontece como um passe de mágica. É necessária uma dose muito grande de sacrifício, porque ninguém individualmente ou coletivamente consegue alcançar objetivos sem clareza do que tem de fazer, baseado numa combinação de consciência cidadã e organização prática, culminando com transformar o sonho em realidade. Mas como se diz, para tanto é preciso que primeiro acordemos e arregacemos as mangas.

O futuro se faz no presente. É sempre o resultado do que se faz. Logo, esse futuro não se encontra escrito previamente, ele deve ser construído pacientemente, mas com determinação e vontade irmanada numa coletividade de comunhão eivada de afetividade e destemor. Em nosso caso, o único projeto de futuro que honra esse vocábulo geralmente associado a boas expectativas é que ele seja uma construção popular.

Dos andares de cima não devemos esperar senão as mesmices corriqueiras marcadas pela insensibilidade, ganância e conciliação com vistas a empurrar indefinidamente o passado que resiste sob as mais variadas máscaras cada vez mais ridículas e obscenas.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.