Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva ao jornal Tribuna da Imprensa Livre, Marcos Balter afirmou: “Só há, ao meu ver, uma única salvação para a nossa cultura: o fim do governo atual. Temos um presidente que decretou guerra aberta a qualquer tipo de engajamento cultural que não lhe sirva como mais um palanque demagógico, tirânico e populista.” Para o compositor:
“Todo som tem o potencial de ser lindo. É só saber escutá-lo pelo que ele é e significa. E sons não existem no vácuo. Som tem história, vem de gente, não podemos desumanizar som. E, como adoro sons, eu adoro poder fazer sons com pessoas diferentes, trocar ideias com elas, e aprender com elas, independente de rótulos como profissional ou amador.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?
Marcos Balter: Música.
Prestes Filho: Música Eletrônica, Música Eletroacústica ou Música Acusmática?
Marcos Balter: Música. Só.
Prestes Filho: Você é carioca. Como acontece a música brasileira na sua obra? Você visualiza hoje nos seus trabalhos informações, conhecimentos e experiências vividas na Escola de Música Villa-Lobos, no Conservatório Brasileiro de Música e na Uni-Rio? Como seus mestres – Linda Bustani, Antônio Guerreiro e Almeida Prado – influenciaram suas escolhas?
Marcos Balter: A minha música é brasileira porque eu sou brasileiro. Eu não preciso
tentar ser o que eu sou, e sempre tomo muito cuidado para não estereotipar a minha
identidade, até mesmo por respeito pela minha cultura e formação. Tive uma imensa
sorte em contar com mestres maravilhosos na minha educação musical no Brasil. A Linda
foi como uma segunda mãe para mim. Aprendi com ela o valor da disciplina e do foco.
O Guerreiro me deu uma formação teórica tão forte que, quando entrei para meu curso
de graduação nos Estados Unidos, pude pular várias classes e ser matriculado em classes
avançadas. E o saudoso Almeida Prado foi minha primeira referência em como pensar
como um artista contemporâneo, me introduzindo à obra de diversos criadores
importantes do século 20. Quando saí do país, minha base estava muitíssima bem
formada.
Devo muito a estes mestres e a tantos outros com quem estudei na minha juventude, como a grande Vania Dantas Leite, David Korechendler, Helder Parente, Maria Theresa Soares e tantos outros.
Prestes Filho: Cite os nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores de que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tem para você importância estruturante na sua formação.
Marcos Balter: Nossa, são muitos, e a lista muda constantemente. Bach é a minha pedra,
adoro Ligeti, e sempre tive um fraco pelos compositores impressionistas, principalmente
Ravel. Também, sou apaixonado pela música medieval e renascentista. Machaut e
Gesualdo são compositores que revisito com frequência. A música popular brasileira me
marcou muito. Acho Caetano Veloso um gênio. Adoro Egberto Gismonte, Arrigo
Barnabé, Djavan, Guinga, Chico Buarque, Edu Lobo, e tantos outros. Muito do meu
pensamento harmônico vem da MPB, mas gosto de outros gêneros também. Adoro funk
carioca, desde Claudinho e Bochecha até Ludmilla. Quanto a compositores vivos
estrangeiros, gosto muito de Kurtag, George Lewis, Anthony Braxton, Kaija Saariaho,
Rebecca Saunders, Georg Friedrich Haas, Chaya Czernowin, Helmut Lachenmann,
George Aperghis, Hans Abrahamsen, Eno Poppe, e, do pessoal da minha geração ou mais
novos, gosto do Simon Steen-Andersen, Liza Lim, Nico Muhly, Clara Iannotta, Tyshawn
Sorey, Jennifer Walshe, Catherine Lamb, e muitos outros. Quanto aos meus
conterrâneos, também são muitos. Adoro o Felipe Lara, a Tatiana Catanzaro, a Michelle
Agnes Magalhães, o Igor Santos, o Alexandre Lunsqui…
Temos muitos compositores brasileiros excelentes atualmente, atuantes tanto no Brasil quanto no exterior.
Prestes Filho: Quais movimentos de Música Contemporânea você acompanha de perto? Como professor, você afirmaria que nas faculdades de música e conservatórios a música contemporânea já ocupa o espaço que deveria ocupar?
Marcos Balter: Todos e nenhum. Não acompanho movimentos e sim artistas. Aliás, os
artistas de quem eu geralmente mais gosto são aqueles que desafiam uma classificação
superficial. Mas, sou um ouvinte voraz, e procuro sempre expandir meu conhecimento
do que está sendo feito hoje, independente de gênero. Tenho o privilégio de ser
professor em um dos grandes celeiros de música contemporânea do mundo, a
Universidade da Califórnia, em San Diego. A lista de artistas ilustres que já passaram por
ali é imensa, desde Brian Ferneyhough a Pauline Oliveros. Dentre os meus colegas
figuram nomes como Miller Puckette (inventor do Max/MSP) e Anthony Davis (vencedor
do Pulitzer de Música do ano passado). O foco da escola é música experimental, até
mesmo entre os instrumentistas. Mas, a UCSD é uma exceção, sei bem disso. O universo
universitário tanto no Brasil quanto no exterior ainda é muito conservador, e muito
atrasado no que diz respeito à música de hoje, o que é uma lástima. Já imaginou alguém
cursar medicina e sair da faculdade só tendo estudado técnicas de pelo menos um
século atrás?
Pois é, isso ainda acontece na formação acadêmica de muitos músicos, o que é no mínimo assustador.
Prestes Filho: Sua obra “Pan” fala de abuso de poder, tirania, fanatismo ideológico, violência sexual, entre outros temas contemporâneos. Na estreia, em Nova York, o elenco reuniu residentes de asilos para idosos, crianças da rede pública de ensino, ativistas políticos, e imigrantes sírios. Estavam presentes todas etnias, credos, identidades de gênero e afetivas. Realizada para a flautista profissional Claire Chase, a obra foi executada por não profissionais. Como se deu o processo de criação e tomada de decisões para realização? Você desejou abrir horizontes para os sons que nos cercam; para a possibilidade permanente do erro; para amadores; para a improvisação?
Marcos Balter: Me baseei muito no Paulo Freire e seu livro “Pedagogia do Oprimido” na
realização do “Pan”. Eu e todo o time criativo fomos muito cuidadosos em criar uma
metodologia que a cada etapa questionava quaisquer estruturas hierárquicas. A
inclusão e a equidade são o verdadeiro combustível da obra. Já apresentamos “Pan” em
vários países, trabalhando com centenas (talvez já milhares) de pessoas das mais
diversas origens e identidades. E, a obra, que é por natureza aberta, continua a evoluir
justamente por causa do que cada individuo que a habita traz consigo. Evolução talvez
nem seja a palavra correta porque sugere polimento, um apagamento de erros. E eu não
acredito que exista um som errado. Todo som tem o potencial de ser lindo. É só saber
escutá-lo pelo que ele é e significa. E sons não existem no vácuo. Som tem história, vem
de gente, não podemos desumanizar som. E, como adoro sons, eu adoro poder fazer
sons com pessoas diferentes, trocar ideias com elas, e aprender com elas, independente
de rótulos como “profissional” ou “amador.” O que faz alguém um mestre de qualquer
coisa é a prática. Seria para mim por demais utilitarista só focar no resultado final.
“Pan” foi a maneira que eu enxerguei de interagir como aprendiz com pessoas que, se não são mestres em performance, traziam consigo um aprendizado enorme em muitas outras coisas que enriqueceram a obra em um modo muito mais holístico do que costumamos aplicar ao que chamamos de composição.
Prestes Filho: Qual é o peso da palavra na sua obra? Quais poetas, além de Fernando Pessoa, trazem para você mensagens sonoras? Como você desenvolveu a peça Concertante para soprano e orquestra, apresentada pela Bachiana Filarmônica de São Paulo, executada pelo maestro John Boudler e pela soprano Adriana Clis?
Marcos Balter: Adoro palavras. Sou sobrinho de dois escritores, Ivan Cavalcanti Proença
e Isis Balter Proença. Desde criança, a leitura foi sempre uma parte muito importante
da minha vida. Já compus várias obras usando texto de alguns de meus escritores
prediletos, desde Clarice Lispector até Gertrude Stein. Até mesmo em obras puramente
instrumentais, eu frequentemente busco inspiração na literatura. Por exemplo, minha
obra “Pessoa” (para seis flautas baixo) é inspirada em um poema de Fernando Pessoa.
Estou agora escrevendo uma obra para o coral “The Crossing” onde estou usando
poemas e trechos de prosas de vários autores de várias épocas, em vários idiomas. Para
a obra para a Bachiana, escolhi trechos do “Livro do Desassossego” porque estava
relendo a obra quando comecei a trabalhar naquela encomenda. E, é assim que
geralmente escolho livros.
Depende do que eu estou lendo no momento, do que está fresco na minha mente.
Prestes Filho: No albúm “Deerhoof / Dal Niente – Balter / Saunier” você demonstrou ser possível o encontro entre dois universos musicais distintos: Rock e Música Clássica. Esta experiência – reunir num só espaço universos paralelos – continuam atraindo seu interesse?
Marcos Balter: Eu não vejo esta distinção, e talvez por isso seja relativamente fácil na
minha cabeça lidar com projetos cunhados por outros como “híbridos”. Trabalho com
pessoas, e não com estilos. O meu modo de pensar durante um projeto depende
muitíssimo de com quem esteja colaborando, independente de qual o tipo de música
que façam. Já colaborei com orquestras, artistas fora do âmbito clássico, amadores,
crianças, etc. Para mim, estilo é uma consequência ao invés de uma causa, algo que
podemos avaliar somente retroativamente. Nunca penso em estilo quando componho.
Eu tento, sim, trabalhar com pessoas diferentes de mim, e das mais diversas
proveniências. Minhas parcerias musicais são um reflexo direto da minha visão como
indivíduo e de como quero me engajar com a sociedade em geral.
Trabalhar somente com quem tem o mesmo tipo de pensamento e linguagem que eu é algo impensável e empobrecedor para mim.
Prestes Filho: Sua obra “Things fall apart” foi encomendada pela Filarmônica de Los Angeles. A “Violin Concerto” foi executada pela Oberlin Conservatory Sinfonietta. Você foi também foi executado pela Orquestra Sinfônica de Chicago, entre outras. Para um compositor brasileiro é de grande importância ver suas obras sendo apresentadas nos EUA e Europa? No Brasil as orquestras dão pouco espaço para música de autores brasileiros.
Marcos Balter: Orquestra é um bicho complicado, cheio de burocracia. É difícil lidar com
este tipo de instituição em qualquer lugar do mundo. Tudo é muito laborioso, toda e
qualquer liberdade e ousadia tem que ser negociada com afinco. Eu acho até irônico que
hoje em dia eu trabalhe com certa frequência com orquestras porque nunca dei atenção
a elas no desenvolver da minha carreira. Sempre achei que encontraria hostilidade para
com o tipo de escrita que eu queria realizar, e por isso nunca perdi meu tempo tentando
me tornar um compositor orquestral. Por um grande tempo, pensei que as orquestras
estavam galopando para tornarem-se obsoletas, caducas. E, na maior parte, elas estão,
infelizmente. Mas, algumas orquestras estão se dando conta de que precisam aprender
a abraçar o novo para sobreviver e para não se tornarem uma curiosidade histórica
como um grupo de madrigal, por exemplo. Sou muito afortunado por ter oportunidades
de trabalhar com ótimas orquestras que estão nesta busca por um rejuvenescimento.
Se, com isso, posso inspirá-las a trabalhar com mais compositores brasileiros, melhor
ainda. Sempre carrego comigo uma obrigação em representar o meu país da melhor
maneira possível. Quero muito dar orgulho aos meus conterrâneos, e principalmente
abrir ainda mais espaços para nossos compositores, dentro e fora do país.
Eu, sinceramente, espero que a minha geração seja a última a enxergar o aeroporto como o melhor caminho para desenvolver uma carreira sólida em composição, orquestral ou não.
Prestes Filho: Como se dá o processo que você chama de “música imprevisível”? Será que por ser imprevisível é mais complexa para execução por uma orquestra sinfônica? Por esta razão, você prefere compor para conjuntos experimentais pequenos?
Marcos Balter: Eu chamo de música imprevisível aquela baseada em instabilidades sonoras, em gestos físicos que são flutuantes por natureza. E, com certeza minha predileção por estes gestos me influenciaram a focar em música não-orquestral. O típico músico de orquestra é não só menos treinado, mas também mais hostil para com este tipo de prática, o que é uma lástima.
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Marcos Balter: Só há, ao meu ver, uma única salvação para a nossa cultura: o fim do governo atual. Temos um presidente que decretou guerra aberta a qualquer tipo de engajamento cultural que não lhe sirva como mais um palanque demagógico, tirânico e populista. A solução para a música contemporânea no Brasil está na urna.
Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha um importante papel na difusão e reunião dos compositores brasileiros. Você entende que o compositor deve participar de associações e de sindicatos para encaminhar reivindicações sociais e participar ativamente das lutas populares? Você diz que em audições para empregos em orquestras o racismo prevalece. Será que este racismo estrutural é a razão da ABM não ter compositoras e/ou compositores negros?
Marcos Balter: Sou sempre a favor de sindicatos e estruturas que defendam os direitos
trabalhistas de musicistas. Mas, qualquer estrutura destas tem que ser representativa
daqueles a quem serve. O fato da ABM não ter nenhum compositor negro não é uma
surpresa, apesar de ser um fato altamente vergonhoso em um país como o nosso. Uma
academia totalmente branca, completamente centrada em músicos de formação
clássica, e com somente 9 mulheres dentre suas 40 cadeiras, não pode nunca nos
representar. E, sem dúvida, a ausência de musicistas negros dentre seus membros é
consequência do racismo estrutural do seu próprio processo seletivo. Há que ter
intencionalidade nestas mudanças absolutamente necessárias. E, pra ontem!
Não tem cadeira vaga suficiente? Adicionemos novas cadeiras, então. Mas, deixar como está é inaceitável.
Prestes Filho: Em março deste ano seu nome foi lembrado, no texto do contrato entre a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo e a Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, como exemplo de que a instituição incentiva ações que promovem a diversidade étnico-racial. Este fato demonstra que sua mensagem está chegando aos gestores de políticas públicas no Brasil?
Marcos Balter: Espero que sim! Sempre que posso, participo de conversas com grupos de estudo e comitês organizados por musicistas brasileiros e instituições governamentais, e sempre toco na mesma tecla nestas questões de inclusão e diversidade. Mas, estou longe de ser o único. Há muitos outros colegas nesta luta, e com contribuições ainda mais palpáveis por morarem no país.
Prestes Filho: Como professor, apesar de você morar nos EUA, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem aqueles que seguem seus passos?
Marcos Balter: Estamos vivendo, na minha opinião, um dos melhores e mais criativos momentos na música contemporânea brasileira. Adoro o trabalho de vários colegas mais jovens, principalmente os das nossas compositoras como Fernanda Navarro, a Tatiana e a Michelle que já citei, e tantas outras. Tento sempre acompanhar o que vem acontecendo na nossa música, e sempre curioso em conhecer novos nomes. Mas, cada compositor tem sua história própria, sua singularidade artística, sua jornada pessoal.
Acho que o dever dos compositores mais velhos é de facilitação, e não necessariamente o de exercer uma influência composicional que diminua a individualidade da próxima geração. Não tenho ambição de ser um modelo composicional para ninguém. Mas, se a minha própria jornada como artista ajudar alguém a achar seu caminho com mais facilidade, fico muito feliz.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
MAZOLA
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Prezados,
Nunca entendi eles terem convidado o Maestro Waltel para encontro e até apresentação, mas nunca incluíram ele na Academia Brasileira de Música (ABM).
Já na ACADEMIA NACIONAL DE MÚSICA, é bem diferente.
Começa pela patronal fundadora: Joanídia Sodré – professora de música, pianista, regente e compositora brasileira.