Por Siro Darlan

AJD renova sua administração e propõe o seguinte MANIFESTO.

Qual o papel de uma associação democrática de magistrados em um país dilacerado pelo golpe empresarial-militar-midiático- -institucional, incluído o Judiciário, e que sofre os piores efeitos mundiais da pandemia, maximizada pela necropolítica e agravada pela desigualdade? Em contexto fortemente agressivo à democracia, aos direitos e às garantias sociais, passando pelo ataque à liberdade de expressão, extermínio de populações vulnerabilizadas e pelo superencarceramento, o caminho é o da resistência e do resgate dos valores civilizatórios e pluralistas que inspiraram a carta de princípios da Constituição de 1988 e do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, assim como os valores que dirigiram a AJD desde a sua criação.

O COLETIVO RESGATANDO objetiva traçar sua linha de atuação a partir das causas e das consequências do déficit democrático hoje vivenciado no Brasil, com base nas seguintes premissas: As profundas desigualdades que formam o tecido social brasileiro sequestram direitos. Nesse sentido, o combate a essas desigualdades em suas múltiplas dimensões, escancaradas e aprofundadas pela pandemia da Covid-19, é questão central para a afirmação da Democracia e a concretização das liberdades públicas e sociais, caminho que não pode desconsiderar as pautas identitárias e, tampouco, desprezar as lutas pela superação do déficit civilizatório que ameaça a humanidade e, com força, a cidadania brasileira; Em cenário de resilientes heranças patriarcais e escravocratas, em que o tratamento dispensado pelo governo à pandemia conduz as históricas desigualdades sociais brasileiras a patamares intoleráveis, alheios às opções aptas a contê-la, é urgente a defesa de política nacional coordenada de combate à Covid-19 e de medidas que assegurem necessário isolamento social, trabalho, renda e fluxos de renda que garantam o direito à vida das pessoas e das famílias e da própria economia; Essas lutas se apresentam como caminhos à conquista da Democracia e da Justiça, cujos obstáculos à plena efetivação localizam-se nas desigualdades e na necropolítica, aprofundadas no neoliberalismo, com compromisso de repúdio e resistência à continuidade de um sistema plutocrata, neofascista e genocida.

São quatro os eixos da nossa atuação:

Objetivo permanente 1

A AJD tem um histórico de contribuições relevantes e de reconhecido impacto na defesa da democracia e dos direitos humanos. No início dos anos 1990, pouco mais de 30 juízes, paulistas, se uniram para a democratização da magistratura, com objetivo de pensar o papel social do Judiciário e lutar por sua independência. Inspirada em experiências de Associações de juízes progressistas internacionais, nasceu a AJD, passando a “assumir posicionamentos nos espaços públicos e enfrentando disputas de espaços políticos, a partir de ideias e do exercício de militância política, não apenas de ações corporativistas, como as que prevaleciam até então”.1 Em 30 anos de existência, a AJD firmou-se no cenário nacional e internacional como ator relevante da sociedade civil nas lutas pela promoção e transformação do Poder Judiciário em protetor da Constituição e do regular funcionamento das instituições, visando a uma sociedade democrática mais justa e na defesa dos direitos humanos dos trabalhadores e populações vulnerabilizadas. Com esse objetivo, a AJD ingressou como “amicus curiae” em muitas ações tramitando no Supremo Tribunal Federal, dentre as quais as ADI 3865, ADPF 320, ADI 4270 e ADPF 153 e apresentou ação, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, contra a utilização da Lei da Anistia como instrumento de impunidade aos torturadores e ilegalidades praticadas durante a ditadura civil-militar brasileira. Assim, a AJD ganhou credibilidade com base no seu histórico de atuação, lutando ao lado dos movimentos sociais de cunho emancipatório e na rede de organizações empenhadas na defesa dos direitos humanos, nos planos nacional e internacional. Também foi grande a repercussão e o significado do documento em que a AJD reconheceu a condição de preso político ao ex-Presidente Lula, documento entregue a ele, em visita de associadas e associados à vigília, em Curitiba, que era mantida por movimentos suprapartidários. O documento já anunciava a suspeição do ex-Ministro e ex- -juiz, Moro, que recentemente foi reconhecida pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

Objetivo imediato 2

É urgente deter o projeto necropolítico no Brasil que alcançou seu auge com a pandemia da Covid-19. O neoliberalismo, mais que etapa de desenvolvimento do capitalismo, mostra-se autêntica nova razão do mundo. No plano econômico, a financeirização e a volatilidade dos capitais, o domínio dos grandes conglomerados empresariais e a desindustrialização têm resultado na construção ideológica de sujeitos cada vez mais individualistas, sem nenhum senso de coletividade e com laços mínimos de solidariedade. Características que se aceleraram a partir do Golpe de Estado de 2016, com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff, por interferência das elites nacionais (com ramificações estrangeiras), em pacto midiático-empresarial-militar-institucional, sem a existência de crime de responsabilidade que lhe pudesse ser imputado. A institucionalização do “lawfare” contaminou muitos atores do sistema de justiça, como demonstra a promiscuidade nas conversas reveladas entre os integrantes da denominada “Operação Lava Jato”, o que ilustra a subversão dos institutos de direito constitucional, processual e penal. São incertos os efeitos para a credibilidade do Judiciário brasileiro, dados os nítidos indícios de que a força tarefa atuou para retirar da disputa eleitoral o candidato com maiores chances de vencer as eleições presidenciais. A retirada do poder de um governo que dava continuidade ao combate à desigualdade foi a senha para se agudizar a destruição da tela pública de proteção social, consagrando-se modelos de exploração da força de trabalho baseados na “uberização”, terceirização e “pejotização”, somados à forte ofensiva ao movimento sindical, desagregando-o e dificultando a tomada de consciência de classe trabalhadora. A apropriação privada da coisa pública foi retirando a força normativa da Constituição, exterminando direitos tanto pela via legislativa como a de interpretação. Promoveram-se emendas à constituição, estabelecendo se rígido “teto de gastos”; e implementaram reformas trabalhista, previdenciária e a administrativa, em pauta. Todas de idêntica inspiração neoliberal. Tido como mercadoria descartável, o proletariado é vítima da “modernizaçãodas relações de trabalho”, eufemismo sob o qual o capital avança descontroladamente sobre direitos básicos. Os dados atuais do mercado evidenciam que as promessas das reformas liberalizantes não foram cumpridas, cujos resultados são o aprofundamento da desigualdade e recrudescimento da crueldade vivenciada por grupos que ocupam a base da pirâmide que, sem renda mínima assegurada, são forçados, no desespero, a arriscarem suas vidas e a de seus familiares, trazendo mais problemas para os efeitos da própria pandemia. Vivem-se tempos de ódio contra migrantes, mulheres, a comunidade negra, os segmentos LGBTQI+, partidários, lutadores sociais, simpatizantes e outros grupos vulnerabilizados. O ódio, instrumentalizado pela razão neoliberal, rompe o tecido social e inviabiliza a concretização dos objetivos de solidariedade, erradicação da pobreza e redução das desigualdades. Embora as estatísticas diárias evidenciem o tragar de vidas pela Covid 19, esse extermínio das populações vulnerabilizadas não se iniciou com a pandemia, que apenas o tornou ainda mais evidente. Carga explosiva que alcançou dimensão dramática com os mais de 330 mil mortos ao momento deste manifesto.

Sobre uma sociedade já fragilizada e dividida, essas mortes atingem de forma mais agressiva as comunidades indígenas e quilombolas, assim como as pessoas de baixa renda. Isso sem falar nas comunidades periféricas, de ampla maioria negra, vitimizadas pela catastrófica condução da política econômica racista que fez o Brasil retornar ao mapa da fome. Acentuando assim as desigualdades sociais reveladas pela ausência de saneamento básico, falta de alimentação adequada, inexistência de renda do trabalho e ineficientes políticas públicas de saúde. Um cruel panorama agravado pelo rigoroso programa de ajuste fiscal que deve ser combatido de forma contundente, na medida em que redireciona para pagamento de juros e serviços da dívida os necessários investimentos sociais, saciando o desejo do capital financeiro. Avolumam-se circunstâncias e provas de que o Governo Federal implementou, de forma consciente, estratégia institucional de propagação do vírus, sob a liderança do Presidente da República, como ilustram estudo elaborado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário/USP2 e artigo das cientistas Cláudia Perrone Moisés e Deisy Ventura3. Ainda, a recente entrevista do General Paulo Sérgio, em 28 de março passado, estampa a necropolítica, evidenciando que o Exército sabia o que deveria ter sido feito, com a taxa de mortalidade na instituição de 0,13%, bem abaixo dos 2,5% da população brasileira4 . Trata-se de conjuntura que impõe luta imediata para adoção de política nacional para enfrentamento da COVID-19, demandando da AJD o apoio à Comissão Central de Coordenação Nacional da Pandemia, proposta por Miguel Nicolelis5 , integrada pelas comissões científicas nacionais, pelo que cabe sugerir o acréscimo da representação dos trabalhadores e empregadores, conforme os termos da Convenção 187 da OIT, para afirmar o direito à vida e a maximização da proteção social, com fundamento em princípios constitucionais e de direito internacional.

Linha de atuação 3

A AJD tem entre os seus objetivos atuar no sentido de contribuir para a superação da dramática realidade que vive o país e reafirmar seu histórico de atuação na defesa da Democracia e dos direitos humanos. E hoje, mais ainda, a defesa de um projeto de nação que, de forma imediata, salve vidas e detenha o avanço de uma necropolítica do governo federal e que, no processo, permita a reconstrução do tecido social e, com solidariedade, a superação das profundas e históricas desigualdades sociais: Na luta central e permanente de combate às desigualdades estruturais da sociedade brasileira, visando a uma Democracia que garanta as liberdades públicas e resgate e amplie direitos suprimidos, sobretudo a partir de 2016, sendo exemplo emblemático as reformas trabalhista e previdenciária; e Na luta urgente de restabelecimento de política nacional coordenada de combate à COVID-19. A trágica conjuntura não permite posição cômoda, omissa ou apenas protocolar. A sociedade espera de uma associação de juízes progressistas, com tantas contribuições inestimáveis à Democracia, que promova ações com impacto e relevância social. É também necessário continuar a atuar junto aos órgãos diretivos e nos Conselhos do Poder Judiciário (em face do crescente número de processos administrativos), bem como intensificar o ingresso, como “amicus curiae”, com foco na defesa dos direitos humanos. No panorama autoritário atual, a liberdade de expressão e de julgamento já fazem tantas vítimas de processos judiciais e administrativos que, conquanto arquivados ou indeferidos, buscam intimidar e frustrar avanços democráticos no Poder Judiciário, com a permanente ameaça à independência de cidadãos, juízas e juízes garantistas. Considerando a qualificação multidisciplinar das associadas e associados da AJD, é necessário agregar esse conhecimento e compromisso institucional perante o Congresso Nacional e os Tribunais Superiores, seja para evitar retrocessos, seja para buscar avanços; e estabelecer espaço de atuação no Conselho Nacional de Justiça para combater a visão meramente tecnoburocrática do Poder Judiciário. Incumbe, ainda, resgatar a atuação da AJD junto aos órgãos e tribunais internacionais, sobretudo para o debate acerca de eventuais responsabilidades por crimes contra a humanidade, inclusive na gestão da pandemia da Covid-19, por autoridades federais. Enfim, é imperativo que a AJD se engaje, de forma efetiva, na organização do próximo Fórum Social Mundial, previsto para 2022.

Configuração interna 4

Para que as ações da AJD tenham impacto e relevância, é imperiosa a construção de novo modo de gestão, que supere a figura do presidencialismo e fortaleça a participação dos associados, associadas e dos núcleos. Para tanto, é premente ampla discussão sobre a reforma estatutária, com a perspectiva das realidades e análises regionais. Até que isso aconteça, é necessário fazer a travessia do modelo presidencialista para o modelo de gestão compartilhada, horizontal e circular, na qual a democracia seja uma experiência radical. A centralização do poder na AJD tem propiciado atuação mais focada em eventos de cunho científico e acadêmico, deixando de lado certos aspectos de atuação político institucional que demandam engajamento e participação de maior número de pessoas. Para remate, ao tempo que apresenta sua proposta de eixos de atuação, a COLETIVA RESGATANDO convida associados e associadas a críticas, adesões e participação para a prática da radical democracia associativa, visando à construção de uma sociedade mais justa e democrática.

COMPOSIÇÃO DA CHAPA:

Conselho Executivo
Presidência CRISTIANA CORDEIRO – TJRJ
Secretaria CLAUDIA DADICO – TRF/SC
Tesouraria GABRIEL VELOSO FILHO – TRT/PA e AP
Demais integrantes do Conselho de Administração
DORA MARTINS – TJSP
LUIZ MANOEL ANDRADE MENESES – TRT/SE
RUI PORTANOVA – TJRS VLADIMIR CASTRO – TRT/CE/abril/2021
Suplentes: CAMILA MOURA DE CARVALHO – TRT/SP
RENATA NÓBREGA – TRT/PE
UEFLA FERNANDES – TJRN


SIRO DARLAN – Juiz de Segundo Grau do TJRJ, Mestre em Direitos Humanos e Saúde Pública, membro da Associação Juízes para a Democracia, conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo, conselheiro efetivo da Associação Brasileira de Imprensa, colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.