Por Cid Benjamin –

Na semana passada o presidente Lula mostrou, mais uma vez, que pisa em ovos quando entra em pauta um assunto que incomode os militares.

Às vésperas do 60º aniversário do golpe de 1964, Lula descumpriu a promessa de reabrir a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. O compromisso tinha sido assumido tanto por ele e pelo ministro de Direitos Humanos, Sílvio Almeida. Este último chegou a informar que o decreto para que a comissão voltasse a funcionar estava pronto, já na mesa do ministro da Casa Civil, Rui Costa.

Sílvio e Rui ficaram num jogo de empurra, mas Lula logo entrou em campo e mostrou que a hesitação não era dos ministros. Era dele mesmo. Numa justificativa canhestra para lavar as mãos, o presidente disse que não estava interessado em “ficar remoendo o passado”. Lembrou que na época do golpe de 1964 tinha 17 anos e que “os generais que estão hoje no poder” eram crianças na época da ditadura. Disse, também, que, na época, passou fome, com a mãe e os irmãos, e não quer ficar lembrando isso.

Cabem aqui quatro observações:

Primeiro: a questão não é pessoal, e a idade de Lula em 1964 não vem ao caso. Ele hoje ocupa a Presidência e tem que agir como primeiro mandatário da nação.

Segundo: os generais não estão mais no poder, como afirmou Lula, num ato falho.

Terceiro: ninguém está pensando em punir os generais hoje na ativa pelos crimes de seus antecessores no Exército, como insinuou o presidente.

Quarto: punir golpistas e torturadores não é remoer o passado. Não se constrói a democracia fechando os olhos para o passado e passando a mão na cabeça de criminosos.

Vale a pena lembrar quando a Lei da Anistia foi aprovada, em agosto de 1979, ainda durante a ditadura. A lei votada no Congresso foi a possível naquele momento. Era aquilo, ou nada. Tanto a oposição parlamentar como o movimento popular agiram corretamente ao aceitá-la. Mas isso não impedia que, mais adiante, a questão fosse reaberta e a lei, revista. Afinal, suas aberrações são gigantescas.

Primeiro, deixou de fora perseguidos com condenação pelo que a ditadura chamou de “crimes de sangue” (ações de guerrilha em que tivesse havido mortos ou feridos). Eles só saíram da prisão depois, com a reformulação da Lei de Segurança Nacional, diminuindo as penas, o que beneficiou alguns presos. Mas a discriminação foi descabida. A jurisprudência internacional e a Declaração de Direitos Humanos da ONU reconhecem a legitimidade de revoltas, mesmo armadas, contra regimes de opressão.

Um segundo ponto: os militares usaram um artifício grosseiro para uma autoanistia. O projeto afirma beneficia autores de “crimes conexos” a crimes cometidos pelos perseguidos políticos. Ora, crime conexo é um crime menor cometido para tornar possível outro, mais importante. E engloba este último. Assim, por exemplo, o uso de documentos falsos para viabilizar um crime maior é conexo a ele.

Mas a ditadura deu à lei uma redação propositalmente ambígua, tentando não permitir a punição dos agentes da repressão política. Vejamos o que diz a lei.

“Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Assim, o crime de tortura ou de assassinato de presos estaria supostamente relacionado com outros “crimes”, praticados com motivação política.

É um artifício grotesco, que só pode ser aceito de má-fé. Ao torturar ou assassinar presos políticos, os agentes do Estado teriam cometido crimes conexos àqueles cometidos pelos opositores presos. E, por isso, seriam também anistiados. No limite — e esse exemplo funcionou na prática — o torturador que estuprou uma presa teria cometido um crime conexo ao dela. E foi anistiado. O absurdo salta aos olhos.

Um terceiro ponto: a tortura e o assassinato de presos políticos nos porões não teriam sido “crimes de sangue”? Como, então, seus autores foram beneficiados pela anistia?

Quarto: houve centenas de casos de “desaparecidos”, sem que os autores dos crimes tivessem sido identificados e julgados. Esses não poderiam ser “casos em aberto”? Basta ver quantos episódios, inclusive no Primeiro Mundo, envolvendo mulheres mantidas em cativeiro por maníacos às vezes durante anos. Como se pode afirmar que os casos de desaparecidos não possam ter sido coisa semelhante? Embora não seja provável, do ponto de vista legal não se pode garantir que sejam casos encerrados. A rigor, mereceriam investigação.

Quinto: nas situações dos desaparecidos e torturados não se pode falar em prescrição dos crimes, mesmo que muitos anos tenham se passado. O Brasil firmou tratados internacionais que consideram imprescritíveis a tortura e o desaparecimento forçado de opositores políticos. Tais crimes não são passíveis de anistia.

Enfim, como se vê, o quadro é mais complexo do que pintou Lula.

E, por que é importante não fechar os olhos, como ele defendeu?

A responsabilização e o julgamento público dos torturadores — dando-lhes todas as garantias que suas vítimas não tiveram — além de fazer justiça, ajudaria a criar anticorpos na sociedade para que a barbárie não se repita. Afinal, o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. Assim, os culpados teriam que ser responsabilizados. Mesmo que, tempos depois, com a página virada, depois de conhecida pela sociedade, pudessem até mesmo ser anistiados.

Por isso tudo, é de se lamentar a posição de Lula.

CID BENJAMIN foi líder estudantil nos movimentos de 1968, participou da resistência armada à ditadura e foi dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Libertado em troca do embaixador alemão, sequestrado pela guerrilha, passou quase dez anos no exílio. De volta ao Brasil em 1979, foi fundador e dirigente do PT e, depois, participou da criação do PSOL. É jornalista, professor e autor dos livros “Hélio Luz, um xerife de esquerda” (Relume Dumará, 1998), “Gracias a la vida” (José Olympio, 2014) e “Reflexões rebeldes” (José Olympio, 2016). Organizou, ainda, a coletânea “Meio século de 68 – Barricadas, história e política” (Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.

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