Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da imprensa Livre, a compositora Jocy de Oliveira afirmou: “Vivemos em um mundo interconectado e, portanto, todos devemos algo a alguém. Acredito que estamos unidos por um fio invisível que tece as criações a partir de invenções em várias partes do mundo. Todos nós criadores contribuímos. De tempos em tempos surge um verdadeiro inventor: como dizia Stravinsky: Não sou compositor e sim inventor”. Autora da primeira obra eletroacústica brasileira, “Apague o meu spot light” (1961), Jocy lamenta o pequeno espaço oferecido a presença feminina na Academia Brasileira de Música (ABM):
“Temos falado sobre isso exaustivamente, mas não se nota uma grande melhora no cenário internacional. Seguimos até hoje as direções e reflexões do Teatro Grego na Antiguidade, mas esquecemos que já em tempos de profunda sabedoria, alicerce de uma cultura até hoje, a mulher não podia participar da cena porque ela não era considerada cidadã grega.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música clássica?
Jocy de Oliveira: Na Europa e nos Estados Unidos da América não há muita necessidade de especificar. Em geral fala-se de pop music ou a musique populaire, por exemplo assim como classic music. Aqui o desinteresse por música erudita ou clássica é tão generalizado que surgiram muitos termos e temos dificuldade de definirmos. Eu diria música erudita ou clássica. Música de concerto não significa nada.
Prestes Filho: Música Eletrônica, Música Eletroacústica ou Música Acusmática?
Jocy de Oliveira: São coisas diferentes. Música eletrônica é composta com meios eletrônicos, eletroacústica com meios mistos (eletrônicos e processamento de sons acústicos), Acusmática é música composta para ser transmitida por meio de caixas de som e espacialização sonora.
Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem própria? A sua obra inaugural – “Apague o meu spot light” (1961) – realizada num momento de efervescência cultural no país, refletiu as buscas que eram realizadas naquele momento? Você apontou com aquela obra um caminho que uma geração inteira iria desbravar?
Jocy de Oliveira: Acredito que o traço cultural de minhas raízes me oferece algo para a caldeira miscigenada de ingredientes com diferentes origens: europeia, linguagens africanas, orientais assim como as cores indígenas. Somos afortunados porque temos este direito de tudo absorver ao sabor antropofágico de nossa história. Vivi minha vida muitas décadas percorrendo estradas em diversos países. Obviamente são vivencias adquiridas que imprimem nossa memória, nossas fantasias e moldam nossa criatividade. Em 1961 vivia muito dividida entre o Brasil, Europa e os EUA. Mas foi no Brasil que concebi e realizei uma obra marcante com a parceria de Luciano Berio. Conheci ele nos EUA quando estava escrevendo “Apague meu spot light”. A peça representou a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil. Seria melhor definir como eletroacústica, porque a parte eletrônica contava também com as vozes pré-gravadas de Fernanda Montenegro e Sergio Britto. As gravações foram produzidas na Rádio MEC, processadas no Studio de Fonologia da Rádio de Milão e editadas, masterizadas na Rádio MEC.
O roteiro, escrito por mim, foi publicado por Massao Ohno, em São Paulo.
Prestes Filho: Você, uma interprete reconhecida, inclusive, com o domínio de repertório internacional da mais alta qualidade, hoje é uma compositora reconhecida. Conte como se deu a passagem definitiva para a composição?
Jocy de Oliveira: O piano é emblemático na minha vida. Vivi com ele praticamente desde que nasci. Dei minha contribuição como intérprete tocando obras contemporâneas, fazendo primeiras audições de obras de Berio, Cage, Xenakis, Foss, Santoro e tantos outros, tendo a honra de ser solista sob a regência de Stravinsky, gravando a obra de “Messiaen”, nos EUA. Fui um instrumento, aquele para quem um compositor escreve e isso me orgulha muito. Chegou o tempo de dedicar mais a minha própria criação. O piano nos prende a ele horas e horas a fio e nos tornamos prisioneiros do instrumento. É quase como uma meditação em que a vida passa ao largo. Precisava de uma liberação e isso começou gradualmente, depois de uma grave operação que me fez, pela primeira vez, encarar a morte. Interrompi a direção de minha ópera mágica “Fata Morgana”.
Quando voltei da cirurgia retomei e mergulhei totalmente nessa minha ópera que enfocava o ciclo da vida. Foi um recomeço.
Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores de Música Eletroacústica que você acompanha no Brasil e no mundo.
Jocy de Oliveira: Igor Stravinsky, Luciano Berio, Messiaen, John Cage, Stockhausen, Santoro. Citaria ainda o maestro Eleazar de Carvalho, com quem fui casada e tenho um filho – Eleazar.
Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar? Poderia citar os artistas brasileiros e estrangeiros da atualidade?
Jocy de Oliveira: A cantora e regente Barbara Hannigan (uma Cathy Berberian de hoje). Citaria também o Ensemble Jocy de Oliveira, composto de músicos brasileiros e europeus que me tem acompanhado por mais de vinte anos. São músicos que se especializaram na música contemporânea e na minha obra. Sou muito grata a dedicação deles. Só para citar alguns: Gabriela Geluda, Doriana Mendes, Ricardo Rodrigues, Paulo Passos, Aloysio Neves, Peter Schuback, Marcelo Carneiro, Rodrigo Cicchelli.
Prestes Filho: A interseção audiovisual/teatro/música hoje é uma realidade. Em especial, por conta da atual revolução científica e tecnológica que está transformando todas as áreas da cultura. Qual é o impacto da mesma na música contemporânea? Você acredita que o seu projeto inovador – “Desmitificado a Música Contemporânea” – efetivamente conseguiu aproximar o público das novas linguagens?
Jocy de Oliveira: Vivemos em uma sociedade orientada visualmente. A escuta está se perdendo. Assim sendo, a união da música com os meios de multimídia vem a favorecer a percepção do ouvinte. Entretanto, é também um problema porque o expectador não está treinado para uma multimidialidade, multidimensão, e ao mesmo tempo caminha para instalações imersivas, espaços de realidade virtual. A tecnologia avança rápido e prepara armadilhas para nossa imaginação. Minha primeira peça com vídeo computadorizado em tempo real foi “Liturgia do Espaço”, apresentada no Estádio de Remo da Lagoa, em 1987. Desde lá tenho explorado vários caminhos visando uma participação ativa do expectador. Durante alguns anos, e com apoio da Prefeitura do Rio, levei a comunidades da periferia o projeto “Desmistificando a música contemporânea “.
Tratava-se da música de hoje por meio de formatos de arte didática abraçando recursos de multimídia e procurando despertar a percepção das crianças e jovens.
Prestes Filho: Em 1959 você lançou o livro “3º Mundo”, anos depois você realizou “Apague o meu spot light” (1961), editado por Massao Ohno. Desde o início de sua trajetória verificamos uma relação direta com a palavra escrita. Entre seus livros se destacam “Dias e Caminhos – seus Mapas e Partituras” (1993), “Diálogos com Cartas” (2014), “Leituras de Jocy” (2018) e “Além do Roteiro” (2020). Como a palavra escrita se realiza na sua obra multimidiática? Você participou da Feira Literária de Paraty como uma escritora ou como uma artista multimídia?
Jocy de Oliveira: A música e a escrita sempre foram manifestações paralelas do meu processo criativo. Minhas óperas são muito autorais e sempre foram criadas concomitantemente. A música, a imagem e o texto não são dissociadas. Meus manuscritos foram publicados em seis livros citados em sua pergunta. Meu livro “Apague meu spot light”, documenta o meu roteiro da peça. “Leituras de Jocy” é um livro que muito me gratifica, organizado por Rodrigo Cicchelli e Manoel Correa do Lago, onde mais de vinte autores analisam meu trabalho. “Diálogo com Cartas” recebeu o Prêmio Jabuti, em 2015. Estive em Parati como uma artista que se expressa de maneiras diversas.
Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? A nossa música contemporânea não deve nada para a música de qualquer outro país?
Jocy de Oliveira: Vivemos em um mundo interconectado e, portanto, todos devemos algo a alguém. Acredito que estamos unidos por um fio invisível que tece as criações a partir de invenções em várias partes do mundo. Todos nós criadores contribuímos. De tempos em tempos surge um verdadeiro inventor: como dizia Stravinsky: “Não sou compositor e sim inventor”.
Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a presença das mulheres em atividades musicais? O número de compositoras na Academia Brasileira de Música (ABM) é muito pequeno. Seria possível uma reflexão sobre este tema?
Jocy de Oliveira: Temos falado sobre isso exaustivamente, mas não se nota uma grande melhora no cenário internacional. Seguimos até hoje as direções e reflexões do Teatro Grego na Antiguidade, mas esquecemos que já em tempos de profunda sabedoria, alicerce de uma cultura até hoje, a mulher não podia participar da cena porque ela não era considerada cidadã grega. Obviamente, isso com o tempo foi corrigido, mas mesmo na ópera o castrati reinou pleno até meados do século XVIII e competiam seus papeis com as mulheres. É preciso lembrar que em varias culturas a mulher que participava como atriz em obras teatrais era tomada como prostituta. Enfim, são séculos e séculos que a mulher foi amordaçada na criação, na política, na sua palavra.
Logo esta revolução iniciada pelas sufragistas vem acontecendo aos poucos e não repentinamente. Infelizmente, a mulher compositora na ABM é grande minoria.
Prestes Filho: Você é compositora das óperas: “Illud Tempus” (1994); “Inóri – a prostituta sagrada” (2003); “Kseni – a estrangeira” (2005); “Revisitando Stravinsky” (2010); e “Liquid Voices – A história de Mathilda Segalescu” (2019), entre outras. São obras onde você buscou reunir suas experiências de compositora, de escritora, de pesquisadora da voz humana, de artista plástica de instalações e diretora de cinema? São óperas onde você conclui pesquisas por “técnicas vocais, ampliadas com a manipulação da voz por processos eletrônicos”?
Jocy de Oliveira: Minha busca por uma intersemiose da música com outras artes, ou melhor, uma multimidialidade, teve início em 1967/68 com meu Teatro Probabilístico, e em 1970, com Polinterações (realizadas nos EUA). Seguiu-se durante minhas peças planetárias, em 1980, que integravam à performance ao vivo, projeções de arte e astronomia. Continuou em 1988, com minha ópera multimídia Liturgia do espaço, que fazia uso da projeção de vídeos captados e processados em tempo real. Meu livro “Além do Roteiro” lançado concomitantemente ao filme é importante para explicar e refletir sobre as questões da intertextualidade de mídias (música, cinema e teatro). O livro introduz e analisa o filme apresentando o roteiro completo do filme, uma profusão de fotos do filme e da versão teatral, assim como todas as partituras da ópera cinemática. Publicado pela Editora Faria e Silva, S. Paulo e distribuído pela Martins Fontes, São Paulo.
É um livro de arte, vital para aqueles que se interessam pelas artes cênicas, cinematográficas e música.
Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?
Jocy de Oliveira: Nunca fui ligada a sindicatos, instituições, etc. No entanto, tornei minha voz presente no campo artístico e político. Nunca me esquivei de participar com as minhas reflexões, opiniões e comentários. Creio que exerci meu papel atuante no mundo que vivemos. Não acredito no artista alienado, nem mesmo penetrando na história medieval, fonte de inspiração para muitas de minhas obras e onde hoje pode-se notar fortemente o oximoro de uma modernidade medieval em que vivemos hoje.
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Jocy de Oliveira: Desmonte da cultura, do meio ambiente, da educação, da ética, do humanismo. Uma era de obscurantismo e êxodo.
Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositora? Quais são as maestrinas e os maestros que mais tem intimidade com sua obra?
Jocy de Oliveira: Alguns grandes regentes que já faleceram como Lukas Foss, Robert Craft, Eleazar de Carvalho e Claudio Santoro. Mas não deixaria de citar, também, Ligia Amadio, o compositor e maestro chileno Boris Alvarado, entre outros. A OSB fez parte de minha vida e, portanto, torço muito para que continue ocupando seu lugar marcante na história da música no Brasil.
Prestes Filho: Está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem seus discípulos?
Jocy de Oliveira: Sim, tive a sorte de ter alguns alunos excepcionais como Denise Garcia, Rafael Valle, Marcilio Onofre, Cristiano Melli. Além de jovens compositores como Marcelo Carneiro, Rodrigo Cicchelli, Arthur Kampela, Felipe Lara e muitos outros.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
MAZOLA
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