Por Murilo Gaspardo

Para reconhecermos um regime político como democrático, precisamos analisar três momentos: a formação da opinião, a tomada de decisão e a implementação da decisão política. Em geral, dedicamos mais atenção aos processos de tomada de decisão (eleições, funcionamento do Congresso Nacional etc.). Entretanto, podemos viver em uma democracia limitada ou em degeneração quando decisões políticas não são concretizadas, por exemplo, em razão de bloqueios ao exercício da soberania impostos pelas elites econômicas nacionais ou globais. Por sua vez, a tomada de decisão é autenticamente democrática quando os agentes que dela participam tem sua opinião bem informada a partir de fontes diversificadas de argumentos e informações, cuja veracidade deve ser verificável, questão particularmente importante em tempos de propagação exponencial de fake news, inclusive pelo Presidente da República. Por essa razão, a liberdade de expressão é um dos fundamentos da democracia.

Além da liberdade de expressão genérica, existem alguns tipos específicos, dentre os quais, para o caso em questão, destacamos a liberdade de imprensa e a liberdade acadêmica. A liberdade de imprensa requer a existência de meios de comunicações plurais e a proteção contra quaisquer formas de censura à divulgação de notícias e opiniões. Já a liberdade acadêmica compreende o livre exercício das atividades de pesquisa e ensino – não existe ciência sem liberdade. Os pesquisadores é quem devem definir suas perguntas de pesquisa, tendo a consistência metodológica e teórica de seus resultados avaliada no debate com seus pares. No exercício de sua atividade de ensino, não podem sofrer censura ou intimidação na expressão de suas ideias, seja no interior da sala de aula, na imprensa ou em qualquer espaço público.

Por outro lado, ressalta-se que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, é preciso ser sopesada, por exemplo, com a dignidade e a honra das pessoas.

Professor Conrado Hübner Mendes. (Fotos: Divulgação)

Isto posto, passemos ao caso das ações intimidatórias perpetradas contra o Professor Conrado Hübner Mendes, primeiro, pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras e, mais recentemente, pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Kassio Nunes Marques. Conrado é um destacado constitucionalista brasileiro que se dedica particularmente a pesquisas sobre o funcionamento das instituições do sistema de Justiça. Com fundamento nessas pesquisas e, certamente, em razão do reconhecimento de sua relevância, tornou-se articulista da Folha de São Paulo onde, a partir de seu trabalho como pesquisador, dialoga com o grande público sobre os desafios das instituições brasileiras. A expressão de suas opiniões nesses artigos, portanto, encontra-se plenamente respaldada tanto pela liberdade de imprensa como pela liberdade acadêmica. Isso significa que o Professor Conrado encontra-se em uma condição de absoluta imunidade para escrever o que quiser sobre qualquer pessoa, de forma que os que se sentirem ofendidos não poderiam recorrer à Justiça em busca de reparação? Evidente que não, mas não é esse o caso das ações penais e representações movidas por Augusto Aras e Nunes Marques.

Ministro Kássio Nunes Marques. (STF/Divulgação)

Em primeiro lugar, são duas altas autoridades da República, o que tem por consequência maior exposição à crítica pública naquilo que se refere ao exercício de suas funções. Embora ocupem a cúpula de duas instituições do sistema de Justiça e não dos Poderes políticos no sentido partidário, suas funções também têm natureza política, suas decisões apresentam alto impacto sobre toda a sociedade brasileira e suas escolhas são essenciais para preservação ou degradação do regime democrático. Portanto, o livre escrutínio público das decisões e ações desses agentes políticos de órgãos de cúpula são inerentes a preservação da democracia. O que fez o Professor Conrado? A partir de fatos públicos e notórios, escreveu artigos críticos à inércia do Procurador-Geral da República em face de infrações penais potencialmente praticadas pelo Presidente Jair Bolsonaro e à manipulação escandalosa de ferramentas processuais pelo Ministro Kassio Marques em afronta a uma posição consolidada do plenário do STF, ocasiões em que ambos revelaram precário compromisso republicado e com o Estado de Direito, e grande fidelidade aos interesses daquele que os indicou para seus respectivos cargos. Em segundo lugar, as ações de Augusto Aras e Kassio Marques configuram claro abuso das posições que ocupam para perseguir quem os critica.

Trata-se, pois, de um exemplo eloquente do fenômeno que o próprio Professor Conrado tem estudado e denominou de “Estado de intimidação” – ou seja, aa manipulação de instrumentos legais para promover a intimidação.

Aras faz olhar de paisagem e finge não ver o que se passa. (Reprodução)

O episódio exige, em primeiro lugar, de toda a comunidade acadêmica e da imprensa, mas também de todos os que têm compromisso com a democracia e com a liberdade, o mais veemente repúdio aos atos intimidatórios, e a solidariedade ao Professor Conrado. A grande questão, porém, não é individual, mas coletiva e institucional. A intimidação não se dirige apenas ao Conrado, mas a todos os que têm uma postura crítica perante o projeto de destruição e morte liderado por Bolsonaro, especialmente nas universidades e na imprensa, e nem todos poderão contar com a rede de solidariedade que têm respaldado o Conrado. Tais atos intimidatórios também se somam ao esforço cotidiano de Bolsonaro para minar a democracia brasileira, com o agravante de partirem do Chefe de uma instituição e de um membro de outra às quais cabem precipuamente a guarda da Constituição e do Estado de Direito, a proteção da sociedade brasileira contra os arbítrios de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Espera-se, diante disso, que as instâncias às quais cabem a decisão sobre as ações e representações em questão respondam solenemente que a Constituição de 1988 continua em vigor, que o “Estado de intimidação” não prosperará e que ainda somos livres.

Leia também: Democracia e a Perspectiva Autoritária, por Siro Darlan 

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MURILO GASPARDO, 38 anos, é diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, Câmpus de Franca – SP, onde é professor-associado (livre-docente) junto ao Departamento de Direito Público e ao Programa de Pós-graduação em Direito. É doutor e mestre em Direito do Estado e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). É Coordenador da Comissão Justiça e Paz do Regional Sul 1 da CNBB. E-mail: murilo.gapardo@unesp.br


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