Por Siro Darlan –
Nestes tempos, um mundo em mudança está sobre nós — um que exige um exame minuto da igualdade, liberdade e humanidade.
No centro desse exame crítico estão questões de raça, colonialismo e os legados da escravidão. À medida que as comunidades exigem o fim da desigualdade racial, a urgência de lidar com as dores e realidades do passado vem na frente e no centro.
Embora a história da escravidão tenha sido fortemente centrada nos Estados Unidos, na realidade, essas empresas globais floresceram em todo o mundo, criando seres humanos e mercadores de homens, mulheres e crianças, na América do Norte, América do Sul, Caribe, Ilhas do Pacífico, Australasia e outras terras. Só navios portugueses levaram milhões de africanos à escravidão durante um período de quatro séculos a partir de meados do século XV.
Mesmo após a abolição formal da escravidão, a colonização tornou-se uma forma renomeada de subjugação e subordinação humana, vista vividamente através das lentes dos alcances imperiais da Europa na Ásia e África, um precursor das formas modernas de escravidão e das formas predatórias em que as sociedades modernas exploram o ambiente não humano. A violência e exploração que resultaram continua sendo um ponto de trauma social, legal, cultural e até mesmo ecológico.
Esses temas marcantes da humanidade que levaram o homem a ser o lobo do homem, e, embora o Criador os tenha criado à sua imagem e semelhança, ao descobrir o egoísmo da propriedade privada, o homem entendeu que podia exercer o império da força e tratar com superioridade a diversidade humana. O ricos escravizaram os pobres, os brancos os pretos, os héteros às diferentes maneiras de viver a sexualidade, os colonizadores os colonizados, e assim o fosso que nos separa foi crescendo até ficar de um lado do Mar Vermelho os poucos detentores do muito e do outro lado a multidão a quem nada restou senão as migalhas. E esse é o maior drama desse planeta em extinção.
Precisamos retomar o rumo dessa história para nos debruçar nos princípios filosóficos da igualdade e fraternidade e colocar essas questões urgentes na vanguarda do nosso engajamento, baseando-se em direito, história, arte, sociologia, psicologia, política e cultura para dar muita atenção ao passado, ao mesmo tempo em que desenhamos lições e esperança para o futuro.
Como princípio, é necessário começar pelo respeito às crianças e adolescentes aos quais estamos legando um ambiente sócio-político devastador e que para que respirem os oxigênio de uma democracia é preciso ensinar a respeitar o Planeta e as regras de convivência pacífica e duradoura. É necessário replantar o planeta e respeitar suas regras naturais. Buscar nos nativos essa inspiração para dialogar com a Mãe Natureza e aprender as lições de um paraíso sem proibições, mas um desenvolvimento sustentável e de qualidade.
No Brasil, após 358 anos da abolição da escravatura, vidas negras ainda são “a carne mais barata do mercado” e não importam tanto quanto as vidas de brancos. Anualmente vidas negras são sequestradas, aprisionadas, sequestradas e seviciadas como objetos descartáveis e de pouca ou nenhuma importância. A opção que a sociedade brasileira oferece aos seus irmão originários da África é sempre as masmorras do sistema penitenciário ou o cemitério.
Crianças e adolescentes negros entre 14 e 25 anos são os mais matáveis por uma polícia essencialmente e estruturalmente racista.
George Floyd, afro-americano, 46 anos, antecedentes criminais, foi sufocado por policiais há pouco tempo: “Não consigo respirar”. Ele fez o mundo ouvir o grito de vidas negras importam. Mas, logo em seguida, na favela do Jacarezinho, 28 pessoas foram mortas em uma operação deflagrada pela polícia civil do Rio de Janeiro, sob a alcunha de Exceptis (do latim exceptus.a.um.: exceto), que nos mostrou que existem exceções.
A emoção tomou conta dos humanos, mas só dos humanos e não eram meus familiares. Não eram meus amigos. Eram irmãos de minha cor, como versa a composição de Bôscoli e Simonal. Eu sou magistrado do Estado do Rio de Janeiro há 40 anos. Nordestino e de pele escura, sei bem o que é essa política de estado de extermínio dos indesejados. Estou ambientado com o mundo do crime julgando meus semelhantes e tenho empatia com todos os que são apresentados para julgamento porque sei que antes do meu julgamento eles já foram filtrados pela polícia e pelo ministério público, duas instituição marcadamente voltadas para a perseguição dos negros e pobres como demonstram as estatísticas. Barbárie. Genocídio. Não era o Covid-19. Era o racismo estrutural operando pela sua veia mais eficaz: a necropolítica.
Uma sociedade acometida por hipermetropia precisa dar distância para enxergar melhor. O grande problema é que distância em termos de fatos, é sinônimo de decurso de tempo. E, em matéria de Direito, quase sempre o tempo cristaliza injustiças, extirpando direitos, sacramentando violações. A exposição dos rostos das pessoas mortas dentro do Jacarezinho é sinônimo de desumanização não só das vítimas quanto de seus familiares. Não há motivos humanos para revitimização. Antecedentes criminais não concedem licença para matar.
A Chacina da Jacarezinho deixa para trás um rio de sangue, mas deixa também duras provas do papel perverso das instituições na produção da violência. A operação que deu início a chacina ocorreu durante a vigência da decisão do Supremo Tribunal Federal que suspendeu as incursões policiais em comunidades, determinando que as operações deveriam permanecer restritas aos casos excepcionais justificados, informados e acompanhados pelo Ministério Público.
No caso do Jacarezinho o Ministério Público alega que a cautela se deve ao necessário respeito à presunção de inocência. Muito diferente de como funciona no dia a dia do sistema de justiça criminal quando a retórica dos promotores criminais costuma expor suas convicções sobre a culpa dos acusados antes mesmo do curso do inquérito ou da oitiva das testemunhas.
O problema é que vidas negras não importam. O problema é que o RACISMO, a palavra que nem o MP, nem os especialistas mencionam, é baseado em DESUMANIZAÇÃO. É simples, assim. O racismo da polícia é aliado do racismo do judiciário que aliado do racismo de especialistas que insistem em achar que o problema está em outro lugar.
Quem puxou os gatilhos?
SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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