Por Aderson Bussinger –
1 de julho de 2020, dia da paralisação nacional dos entregadores de aplicativos, traz á tona na história das relações trabalhistas no Brasil uma de suas maiores mazelas, ao lado do drama dos cortadores de cana, trabalho infantil, carvoeiros e empregadas domésticas, dentre outras tantas (há ainda muitas outras…), que é a dura e indigna realidade de super-exploração destes trabalhadores.
Trata-se de greve de profissionais que, através de suas motos, realizam greve-protesto, diferente de muitas outras, como também diferentes são as novas ocupações profissionais sob o regime de aplicativos, sendo que, além da reivindicação de reconhecimento de vínculo, consta na pauta destes trabalhadores urbanos os pleitos de fim dos desligamentos, sumários, bloqueios indevidos, sistema de pontuação injusto, exigência de seguro de vida, (de acidente e roubo) e, na parte remuneratória, o aumento do valor mínimo por cada corrida, em que há contratos (onde ainda estes são formalizados…) que constam R$ 1, 50 por KM rodado, mas em taxa “ flutuante” por algoritmos indecifráveis e enganadores.
É, sobretudo uma pauta social, fruto da mazela maior que aflige todo o denominado mundo do trabalho, que é a informalidade excessiva, as relações cada vez mais precárias, regidas por “aplicativos”, em lugar de pessoas e leis de regulação laboral, cujo sistema de transporte de “uber”, dito “uberizado” é ainda sua face mais gritante, ao lado agora dos garotos( e garotas) entregadores de Ifood e de milhares de negócios espalhados pelo Brasil afora, pizzarias, comida japonesa, supermercados, cerveja, encomendas, enfim “mil formas de entregas” que, na essência, possuem em comum o fato de remunerarem mal, controlarem muito e, em conseqüência, causarem fadiga física e mental, além de muitos acidentes no trânsito.
Convenhamos, contudo, que o fenômeno das entregas por aplicativos de comida, por exemplo, não é novidade,“delivery”, pois já vinha ocupando a cena e as ruas há bastante tempo, há mais de 5 anos, como Rappi, iFood, Loggi, Eats, 99Food, James, tendo agora extrapolado, razão principal de ser desta greve atípica, que tem como centro este tipo de entrega, cujas compras no cartão, segundo levantamento do Instituto Foodservice Brasil (IFB), cresceram 55% neste Abril, ultrapassando o volume de 20 milhões de pedidos só em 2019, ao lado de um aumento superior a 90% do numero de acidentes segundo o Infosiga SP. Imaginem atualmente! Há empresas formais, que ainda cumprem a legislação básica do trabalho, cada vez mais flexibilizada, mas os aplicativos não asseguram o mínimo de formalização, carteira assinada, horário de trabalho, férias, 13 salário.
Com a Pandemia, esta situação se agravou ainda mais, pois a demanda por entregas aumentou exponencialmente e o fato é que mais de 60% dos entregadores viram sua renda cair, em fenômeno parecido com a chegada do Uber em relação aos motoristas profissionais, visto que os aplicativos, em detrimento das empresas formalizadas de entregas, passaram a ter grande peso no mercado, ao lado de toda uma realidade já diversificada de entregas através de pequenos negócios. Os exemplos de tudo isto estão nas ruas, saltando aos olhos, como verdadeiro “ fio desencapado” em um circuito de atividade que, como visto, já era bastante precário e passou especialmente a produzir muitos óbitos, atualmente, por conta da COVID-19, como potencial de transmissão do vírus, “sobre duas rodas” e contaminação dos entregadores..
Este aspecto, -o fato de tudo isto ocorrer e ser potencializado pela Pandemia!-, faz deste justo movimento uma greve de cunho sanitário, também, em defesa da saúde dos próprios entregadores e igualmente dos cidadãos, da coletividade onde circulam com suas motocicletas barulhentas. É a nova greve do século XXI, como também existem greves ambientais, em defesa do meio ambiente, em atividades castigadas pela poluição, enfim, um novo tipo de movimentação trabalhista que desafia os estudiosos da sociologia, o Direito do Trabalho e o próprio sindicalismo tradicional e apegado a velhas formas de mobilização e organização. Quem irá julgar esta greve, que deve alcançar mais de 5 Estados da Federação? Os respectivos TRTs? O TST? Quem irá afinal negociar com este movimento? A Ifood? E as autoridades sanitárias como deverão se portar em relação as denuncias de contaminação através da entrega de produtos, sem o devido EPI? São novas indagações, reflexões, sendo que o maior julgamento, a meu ver, deve ser o da consciência de cada uma pessoa que utiliza diariamente estes serviços precários, semi-escravizados, e que depende de nosso apoio solidário, pois não entregaremos uma sociedade melhor (e com trabalho minimamente civilizado) aos nossos filhos e netos enquanto sequer os entregadores de aplicativos forem tratados como animais de carga “motorizada”! Todo apoio a greve dos Entregadores! É em defesa da vida, de remunerações dignas e dignidade humana.
ADERSON BUSSINGER – Advogado sindical, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, conselheiro da OAB-RJ, membro efetivo da CDH, membro do IAB, ABJD e ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas). Colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.
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