Por Luiz Carlos Prestes Filho –
No International Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA) de 2020, um dos mais importantes eventos no gênero, o cinema brasileiro estará presente com o filme “Dentro da Minha Pele” de Val Gomes e Toni Venturi. O filme traz para o primeiro plano situações extremas de racismo ou, como afirma Val Gomes, de racismos: “Racismos que acontecem no silêncio e na cumplicidade do cotidiano que muitas pessoas “não veem”? E as pessoas negras são submetidas sistematicamente?” Em entrevista exclusiva para o jornal TRIBUNA DA IMPRENSA LIVRE os autores afirmam:
“Estamos felizes que uma questão tão local, como a questão racial no Brasil, tenha sensibilizado o olhar da Europa. Ao mesmo tempo, entendemos que o racismo estrutural do Brasil é resultado das políticas coloniais pré-capitalistas das potencias europeias. Eles têm muito a ver com esta história de exploração e miséria.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Os autores do filme “Dentro da Minha Pele” escolheram o tema ou o tema escolheu os autores?
Toni Venturi: A gênesis do projeto data de 2015 quando o Brasil submerge na crise política, alimentada pela Lava Jato e a sanha anticorrupção que tomou conta da sociedade. Tudo isso em meio a recessão econômica e a insatisfação da classe média branca que havia tomado as ruas desde 2013. Mais tarde, vim a entender que essa agitação entre os privilegiados tinha o objetivo político de interromper o ciclo dos governos populares e trazia em seu bojo o desconforto da sociedade tradicional com a inclusão dos pretos e pobres no centro da vida social do país. A instabilidade institucional me levou a pensar num filme que refletisse a cara do Brasil que estava se formando a partir desta fervura. Contudo, a pesquisa nos revelou que era cedo para entender este complexo momento político-social, que o filme ficaria pretencioso e logo estaria datado. Nesta época a produtora Olhar Imaginário estava envolvida na produção da série “Cena Inquieta” sobre teatro de grupo fora do eixo comercial, o teatro negro, de gênero e de experimentação de linguagem. O tema racial já permeava minha fabulação. Foi neste momento que Val Gomes, socióloga preta e pesquisadora da série, entra no projeto do longa para colaborar a dar forma ao documentário. A partir da literatura negra que ela introduz se desvelou para mim a importância da questão racial como elemento central das desigualdades sociais do Brasil. Isto foi revelador. Até então, minha análise intelectual, baseada no conceito marxista clássico de classe, não via o tema da raça como essencial na discussão de nossa identidade e formação da sociedade. Assim, decidimos mergulhar juntos nessa seara. Sou muito grato a esta experiência porque mudou meu olhar sobre o país e minha relação com o povo brasileiro.
Acho que o tema me escolheu, afinal sou descendente de italiano, privilegiado pelas políticas de embranquecimento do início do século passado, que precisava acordar para esta realidade. Antes tarde do que nunca.
Prestes Filho: Como surgiram as personagens Estefânio Neto, Rosa Rosa, Wellison Freire, Jennifer Andrade, Neon Cunha, Daniela dos Santos e Cleber dos Santos?
Val Gomes: Inicialmente acordamos, Toni e eu, o conceito dos casos que desejávamos mostrar no filme. Situações extremas de racismo? Ou racismos que acontecem no silêncio e na cumplicidade do cotidiano que muitas pessoas “não veem”? E as pessoas negras são submetidas sistematicamente? Normalmente, as pessoas brancas se tocam quando há situações extremas de humilhação, como por exemplo o caso da advogada que foi algemada no Fórum em 2018. Ou quando a torcida grita em uníssono “macaco” para um jogador negro. Me pergunto se realmente se sensibilizam ou, como diria os psicanalistas lacanianos, se sentem prazer na humilhação do outro. Enfim, fizemos a opção por mostrar um leque amplo de racismo, dos sutis aos explícitos. Criamos uma rede com 9 pesquisadores, majoritariamente da periferia, para buscar pessoas dispostas a contarem as suas histórias. Além disso, frequentávamos diversos seminários e atividades, tentando identificar possíveis personagens. Os pesquisadores trabalhavam numa planilha com os dados do candidato a personagem e gravavam um vídeo contando a sua história pessoal porque um outro elemento essencial para o filme é o carisma de tela. Eu fazia a triagem que depois discutia com Toni, levando em consideração a classe social, educação, profissão, tom de pele, situações de racismo, etc. Foi um processo de meses. Gravamos 12 “cases”, mas no filme só aparecem 7, com 9 personagens. Cinco histórias caíram na montagem. Para mim a força do filme está nos personagens, pessoas que a gente apresenta com toda a dignidade no seu dia-a-dia e no relato sua experiência. No filme temos uma modelo e artista performer, uma trabalhadora doméstica, um médico, um garçom, uma professora, uma servidora pública trans, dois estudantes universitários e uma mãe que perdeu um filho assassinado pela polícia. São pessoas comuns que a gente vê todos os dias nas ruas, no transporte público, nos estabelecimentos comerciais e uma grande parte da sociedade os ignoram.
Daí, quando você está de frente para essas pessoas escutando suas histórias, numa situação serena e ponderada, sentindo a verdade que elas vivem na própria pele, não dá para fugir e nem fingir.
Prestes Filho: Os autores optaram por dar nome, identidade e endereço para o racismo no Brasil?
Toni Venturi: O racismo estrutural brasileiro tem características próprias e simbólicas só encontradas aqui. Dos 10 milhões de africanos sequestrados da África para as Américas metade desta população teve o Brasil como destino final. O sistema mercantil dos ciclos econômicos da monocultura – extração de madeira, cana de açúcar, ouro e café – numa terra de dimensões continentais se alimentava dessa enorme quantidade de mão de obra humana escrava. A roda do capitalismo moendo gente há séculos. Foram 350 anos de escravidão, uma história de sangue e tristeza, solapada e invisibilizada pela elite econômica branca, mas que começa a ser passada a limpo. Fomos também o ultimo país do mundo ocidental a abolir a escravidão. Estes infames feitos e índices de perversidade apontam para a necessidade concreta de reparação histórica e econômica para os afro-brasileiros. Esta é uma discussão que precisamos travar na próxima década, e tem a ver com cotas e cessão de privilégios. Aliás, um dos temas candentes do documentário quando expomos os conflitos que aconteceram entre os entrevistados e eu. Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, usamos os atritos com o diretor branco como dispositivo para gerar tensão dramática e ajudar a reflexão do espectador. Enfrentar a questão racial não é prazeroso. E os brancos antirracistas que desejam estar nesta trincheira tem que saber que há dor e desconforto nessa jornada.
Mas que ela nos faz seres humanos melhores.
Prestes Filho: A linguagem do documentário foi definida do pelos patrocinadores? Exclusivamente pelos autores?
Toni Venturi: O projeto foi produzido de forma independente e livre. Os recursos do FSA – Fundo Setorial do Audiovisual da ANCINE, provenientes da difusão das obras de cinema lançadas pela produtora Olhar Imaginário, permitiram cobrir metade do valor da produção do filme. A outra metade vem dos patrocinadores, a empresa Spcine do Município de São Paulo e o Instituto Cultural Çare. Estes recursos também não chegaram com nenhuma demanda editorial. Uma vez o documentário finalizado, procuramos a Globoplay que se interessou pela obra que já estava selecionada para o 25º Festival É Tudo Verdade 2020.
Aí partimos para uma negociação diferenciada que não caísse na vala comum da mercantilização e traísse os princípios antirracistas do filme.
Prestes Filho: Hoje esquerda e a direita atacam todas as mídias. Em especial as Organizações Globo como parte da MÍDIA GOLPISTA. Neste contexto, como foi trabalhar para veicular o documentário na Globoplay?
Val Gomes: O setor audiovisual está passando por um momento muito difícil, o pior das últimas duas décadas: a paralisia do fomento ANCINE, o veto do presidente do artigo 1A da renuncia fiscal da Lei do Audiovisual e ausência de políticas públicas estruturantes. Tudo isso somado a pandemia está nos deixando sem horizontes. Finalizamos o “Dentro da Minha Pele” em março e estávamos pensando as saídas para o lançamento, com os cinemas fechados, a crise do Covid e o grande represamento de títulos esperando o momento do cinema voltar a operar normalmente. Com o assassinato de George Floyd e a repercussão no mundo vimos setores da sociedade brasileira interessados em abraçar as ações antirracistas. Então, fomos atrás das empresas VOD, de streaming. Contatamos a Globoplay e eles demonstraram interesse imediato na obra e aí partimos, junto com a distribuidora O2 Play, para uma negociação distinta. O filme, além de contribuir para compreender as relações raciais no Brasil, é imbuído de um compromisso ético. Apresentamos a Globoplay nossas questões de fundo deixando claro que só haveria negócio se a empresa realizasse uma campanha verdadeiramente antirracista. Nosso entendimento era que o lançamento não pusesse a perder o sentido político que o tema do filme carrega. O que foi cumprido. Além disso, implementamos um serviço de cuidado da saúde emocional daqueles que confiaram a nós a sua história íntima, oferecendo um suporte psicológico com Maria Lúcia da Silva, do Instituto AMMA Psique e Negritude, para as 9 pessoas (personagens) que têm suas histórias narradas na obra. E compartilhamos 70% dos dividendos do licenciamento com 49 pessoas (44 negros e 5 brancos) que fizeram este filme, na frente e atrás das câmeras.
Esta foi a nossa experiência, uma negociação madura e firme em todos os momentos.
Prestes Filho: O racismo no Brasil tem raízes profundas, bate nos negros, nos africanos, nos índios, nos latino-americanos e nos asiáticos. Os autores têm olhar para todas vertentes do racismo? Pensam em novos filmes?
Val Gomes: Sim, existem muitos racismos. Conhecemos os mais explícitos que no Brasil são o anti-negro e contra os povos indígenas. No caso do “Dentro da Minha Pele” o foco foi o anti-negro. A gente quer mostrar que o projeto político que sustentou as ações seculares de violência e exclusão da população negra foi um desenho dos governos e da sociedade branca hegemônica. Tenho um projeto que dialogo com os efeitos e consequências do racismo estrutural, uma série de documentários sobre artistas plásticos, “Arte Afro-brasileira Contemporânea”. Hoje, temos um conjunto significativo de obras e artistas plásticos afro-brasileiros, com uma produção diversificada e reconhecimento internacional, que tem pouquíssima projeção no Brasil. A série conta com a curadoria do antropólogo Hélio Menezes, na qual pretendemos fazer uma cartografia da produção das artes plásticas atual do país. Um nicho e um mercado ocupado secularmente pela elite branca.
Prestes Filho: Como os autores vêm as políticas públicas atuais para o combate do racismo no Brasil? O presidente da Fundação Palmares tem realizado ações revisionistas. Qual caminho a seguir?
Val Gomes: Existe um projeto racista da extrema direita capitaneada pelo presidente e seus subalternos (a maioria brancos, mas há negros também como o presidente da Fundação Palmares) que representa os segmentos da sociedade inconformada com os avanços sociais e as questões identitárias. Mas a história do Brasil e as conquistas do movimento negro nunca foram lineares. A branquitude não suporta avanço social haja visto a reação contra as cotas nas universidades e concursos públicos, contra a regulamentação do trabalho doméstico, e recentemente a conquista que obriga os partidos políticos a investir, de forma proporcional, verba do fundo eleitoral (FEFC) entre os postulantes brancos e negros. Sempre há contestação e o movimento negro segue lutando pela erradicação desses padrões violentos de exclusão. Conquistamos inúmeras vitorias ao longo das décadas. O resultado das eleições municipais de 2020 mostra que houve um aumento expressivo, em várias cidades, de mulheres negras eleitas vereadoras. A mais votada na cidade de São Paulo é uma mulher negra, Erika Hilton. Será a primeira mulher negra trans na Câmara dos Vereadores de São Paulo. Elegemos também o coletivo Quilombola Periférico com uma pauta de combate o racismo institucional na cidade, entre outros negros com pauta progressista. No país, a eleição do dia 15 de novembro marcou dois recordes para a população quilombola nos processos eleitorais. O primeiro refere-se ao número de candidatos a prefeito e a vereador. Cerca de 500, de acordo com um levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). O segundo, foram eleitos 56 representantes de quilombolas: um prefeito (em Cavalcante, GO), um vice (em Alcântara, MA) e 54 vereadores em 10 estados.
Ainda é pouco? Sim, mas nós negros continuamos lutando por uma Brasil melhor para todos os brasileiros.
Prestes Filho: O negro no cinema brasileiro hoje tem diretoras e diretores, homens e mulheres roteiristas, atrizes e atores, produtoras e produtores. Aconteceu um avanço? Quais nomes vocês citariam?
Toni Venturi: Este é um fenômeno recente. Há cineastas e profissionais negros – diretores, roteiristas e produtores-criadores que são invisibilizados em função do racismo estrutural. Mas, neste momento, estão aparecendo com toda a garra e força. São filhotes das cotas e da inclusão social que o país viveu nos governos da era Lula e das políticas afirmativas da última década do ciclo virtuoso do cinema brasileiro, pré-Temer e Bolsonaro. Outro fator que dificulta a entrada de pessoas negras no setor audiovisual é um elemento subjetivo: a confiança, um pilar fundamental na montagem das equipes. O erro na escolha é fatal. Os brancos, que vivem nas bolhas privilegiadas de brancos, estudam nas faculdades de brancos, automaticamente irão trabalhar com outros brancos criando assim o circulo vicioso do racismo estrutural. Para a produção do “Dentro da Minha Pele” fomos atrás de profissionais e técnicos negros. A equipe de produção é 100% negra, com a minha exceção. Hoje, a produtora Olhar Imaginário tem um portal de projetos antirracistas de criadores e realizadores negros coordenado pela Val Gomes. Quebramos esse paradigma cruel. Há um conjunto de cineastas e profissionais negros atuando forte no cinema brasileiro hoje, como por exemplo, os diretores Joelzito Araújo, Adélia Sampaio, Jefferson De, Camila de Moraes, Daniel Fagundes, Renata Martins, Viviane Ferreira, Lázaro Ramos, Renato Cândido, Sabrina Fidalgo, André Novais Oliveira, Yasmin Thayná, Gabriel Martins, Juliana Vicente e muitos outros vindo aí.
Prestes Filho: O filme “Dentro da Minha Pele” foi selecionado para o IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdam. Qual a expectativa?
Toni Venturi e Val Gomes: Estamos felizes que uma questão tão local, como a questão racial no Brasil, tenha sensibilizado o olhar da Europa. Ao mesmo tempo, entendemos que o racismo estrutural do Brasil é resultado das políticas coloniais pré-capitalistas das potencias europeias. Eles têm muito a ver com esta história de exploração e miséria. O IDFA é um dos mais importantes festivais do gênero e esperamos que a exibição do filme na prestigiosa seção “Frontlight” abra as portas para a distribuição do documentário nas televisões e mercados europeus. Estamos orgulhosos de ter nossa estreia internacional exatamente no lugar onde a famigerada Companhia das Índias Orientais da Holanda controlava o comércio mundial de especiarias das colônias portuguesa e espanhola, inclusive o comércio de escravos, desempenhando um papel determinante no imperialismo e no genocídio colonialista. É um dado simbólico que chama a nossa atenção. Para o mundo o filme vai nascer no dia 24 de novembro de 2020 num dos polos econômicos mais influentes do renascentismo europeu.
Que seja um nascimento de reparação histórica.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Cineasta, formado na antiga União Soviética. Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local, diretor executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009). É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
MAZOLA
Related posts
Editorias
- Cidades
- Colunistas
- Correspondentes
- Cultura
- Destaques
- DIREITOS HUMANOS
- Economia
- Editorial
- ESPECIAL
- Esportes
- Franquias
- Gastronomia
- Geral
- Internacional
- Justiça
- LGBTQIA+
- Memória
- Opinião
- Política
- Prêmio
- Regulamentação de Jogos
- Sindical
- Tribuna da Nutrição
- TRIBUNA DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
- TRIBUNA DA SAÚDE
- TRIBUNA DAS COMUNIDADES
- TRIBUNA DO MEIO AMBIENTE
- TRIBUNA DO POVO
- TRIBUNA DOS ANIMAIS
- TRIBUNA DOS ESPORTES
- TRIBUNA DOS JUÍZES DEMOCRATAS
- Tribuna na TV
- Turismo