Por João Batista Damasceno –
As garantias conferidas aos juízes para o exercício de suas funções com independência são tratadas, por vezes, pelo senso comum ou até mesmo pela mídia, como privilégios de uma categoria profissional.
Dispõe a Constituição que os magistrados gozam das garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e da irredutibilidade de suas remunerações. A crise institucional que se abateu sobre o país em tempos recentes levou ao questionamento do que deveria ser um consenso da sociedade para que os juízes pudessem lhes assegurar os direitos livres de pressões externas ou internas.
Não fossem os juízes inamovíveis, diante de uma causa que envolvesse o interesse de grupo econômico em detrimento dos consumidores, bastaria remover o juiz e designar outro que atendesse aos interesses do poder econômico. As causas são distribuídas aos juízes por meio de sorteio. Assim, ninguém escolhe o juiz da sua causa.
Na Primeira República, período nefasto da história do Brasil encerrado com a Revolução de 1930, quando tais garantias não existiam, não raro as remunerações dos juízes eram cortadas, tornando-os reticentes diante do poder decorrente do coronelismo, quando tinham que tomar alguma decisão cujos interesses pudessem ser afetados. O Ministro do STF Victor Nunes Leal, cassado após a edição do AI-5, escreveu um livro clássico intitulado Coronelismo, Enxada e Voto, onde analisa tal questão com profundidade.
Após a Revolução de 30, foi promulgada a Constituição de 1934. Mas durou pouco. Em novembro de 1937, foi instituído o Estado Novo e uma Constituição de feição autoritária foi outorgada. Mas mesmo diante daquela Constituição de feição autoritária houve quem defendesse as garantias dos magistrados como indispensável à segurança dos direitos dos cidadãos brasileiros.
Oliveira Vianna, que atuou como consultor da Presidência da República e foi o responsável pela instituição da Justiça do Trabalho no Brasil, posteriormente nomeado ministro do Tribunal de Contas da União, teve a oportunidade de emitir parecer onde afirmava a necessidade de garantias da magistratura, mesmo naquele regime totalitário. Oliveira Vianna não qualificava o Estado Novo como uma ditadura ou um regime totalitário. Ao contrário, dizia que se tratava de uma democracia autoritária, onde o Chefe da Nação interpretava e representava a Vontade Geral. Portanto, toda decisão dos órgãos e poderes do Estado, mesmo as decisões judiciais, deveria estar em conformidade com a vontade do chefe do Estado.
Mas Oliveira Vianna ressalvava o perigo que poderia ser um regime no qual os juízes se sentissem inseguros de desagradar ao ditador. E para que não fossem tomados de tal sentimento, em prejuízo da realização dos direitos da sociedade, haveriam de ser imunes a qualquer tipo de retaliação. Embora de concepção autoritária e conservadora, as ideias de Oliveira Vianna precisam ser revisitadas no presente momento, a fim de assegurar as garantias à magistratura em proveito da sociedade.
Estudando os regimes totalitários europeus dos anos 30, Oliveira Vianna afirma que em nenhum deles os magistrados estavam sujeitos à hierarquia administrativa; em nenhum estariam subordinados ou subalternos aos chefes dos Estados totalitários. Disse que a restrição ao “livre movimento dos magistrados no campo das suas atribuições” e sem independência funcional da magistratura é impossível qualquer sistema funcionar.
Na vigência dos regimes totalitários, onde os poderes estavam enfeixados nas mãos do chefe do Poder Executivo, o Presidente da República podia suspender, aposentar ou demitir quaisquer funcionários cujo comportamento não lhe parecesse adequado. O Estado num regime totalitário não é Estado de Direito, onde há de viger a vontade impessoal da lei e não a vontade pessoal dos agentes públicos. Mas, interpretando a Constituição outorgada de 1937, Oliveira Vianna dizia que a “obediência pessoal do Chefe do Governo não pode atingir os órgãos da magistratura”. E concluía que mesmo a aposentadoria autorizada naquela Carta autoritária somente se poderia fazer para os funcionários administrativos “quando, pelas suas ideias e doutrinas, estivessem em desacordo com os princípios do próprio regime”. “Mas não poderia fazer o mesmo em relação aos magistrados, pois que estes não podem estar obrigados, órgãos de um poder político que são, ao mesmo dever de obediência; obediência eles só devem à lei e à Constituição”, disse.
O parecer emitido pelo então ministro do Tribunal de Contas da União, publicado em Ensaios Inéditos pela Editora da Unicamp, nos coloca a questão de necessidade de independência funcional dos juízes em prol da realização dos direitos e garantias da sociedade.
Num Estado Democrático de Direito, tal como assegurado no art. 1º da Constituição da República, tais garantias não comportam dúvida. Menos ainda por posicionamentos doutrinários dos julgadores. Afinal, um dos princípios consagrados na Constituição é o da pluralidade, sem o que não há que se falar em democracia.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.
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