Redação

A fuga de Carlos Ghosn do Japão para o Líbano ocorreu depois de semanas de planejamento por parte de colaboradores que pretendiam levar o ex-executivo do setor automotivo para um país que acreditassem oferecer um ambiente jurídico mais favorável para julgar as alegações de irregularidades financeiras contra ele, segundo pessoas familiarizadas com o assunto.

No fim de semana passado, uma equipe reunida para realizar sua transferência colocou o plano em ação com a ajuda de cúmplices no Japão. Ghosn foi levado de sua residência monitorada pela Justiça em Tóquio para um jato particular, com destino à Turquia.

OPERAÇÃO – Ghosn continuou de avião para o Líbano, aterrissando no país na manhã de segunda-feira, segundo pessoas familiarizadas com o assunto. Lá, ele encontrou-se com sua esposa, Carole Ghosn, que desempenhou um papel importante na operação.

Segundo a agência de notícias Reuters, teria se encontrado também com o presidente do Líbano, Michel Aoun. A reportagem afirma que o encontro ocorreu no gabinete da Presidência e que Ghosn agradeceu a Aoun pelo apoio dado por ele e por sua esposa Carole enquanto estava detido.

“MELHOR PRESENTE” – Em uma mensagem de texto para o Wall Street Journal, Carole Ghosn descreveu o reencontro com o marido como o “melhor presente da minha vida”. Segundo uma pessoa com conhecimento do assunto, o plano de Ghosn é limpar seu nome, buscando um julgamento no Líbano, terra natal de seus ancestrais e um lugar onde ele é considerado um herói nacional.

Os advogados de Ghosn acreditam que, de acordo com a lei libanesa, os promotores locais poderiam trabalhar com seus homólogos japoneses para interpor uma ação judicial —ainda que em condições que Ghosn considere mais favoráveis do que as do Japão.

Os promotores japoneses ainda não comentaram a decisão, mas em ocasiões anteriores defenderam seu sistema legal e disseram que Ghosn seria julgado de maneira justa. A lei libanesa permite que os cidadãos sejam processados por crimes cometidos no exterior, desde que o crime também seja um crime no Líbano.

ACUSAÇÕES – Ainda não se sabe se as autoridades libanesas ou japonesas concordariam em seguir essa via legal, caso ela seja aplicável a Ghosn. No Japão, Ghosn, ex-presidente de Renault SA, Nissan Motor Co. e Mitsubishi Motors Corp., é acusado de crimes financeiros, incluindo evitar que a Nissan informasse mais de US$ 80 milhões em receita futura planejada nos resultados financeiros da empresa e direcionar o dinheiro da Nissan a ser gasto para benefício próprio.

Ele disse ser inocente de todas as acusações e prometeu contestar essas acusações em um julgamento que deveria começar em 2020. A fuga de Ghosn surpreendeu seu próprio advogado no Japão. Junichiro Hironaka disse que viu Ghosn pela última vez em 25 de dezembro e planejava encontrá-lo novamente em janeiro.

PASSAPORTES – Ele disse, sem fornecer detalhes, que o voo de Ghosn pode ter envolvido uma “grande empresa” na preparação, e que a equipe jurídica ainda está com os passaportes francês, libanês e brasileiro de Ghosn. A decisão de Ghosn de fugir tem sua origem no que ele considerou como maus-tratos por um sistema jurídico que ele acredita estar contra os réus.

“Não fugi da Justiça – escapei da injustiça e da perseguição política”, disse ele em comunicado enviado a repórteres na terça-feira de manhã. Ele reclamou de “um sistema de justiça japonês fraudulento em que se presume culpa”.

CABO DE GUERRA – O ex-executivo do setor automobilístico, que alega ter sido vítima de um cabo de guerra entre a Nissan e a Renault, passou mais de quatro meses na prisão, em dois períodos diferentes, antes da Justiça determinar sua libertação sob fiança no final de abril. Mas ele se revoltou especificamente com as restrições impostas pelo tribunal ao seu contato com a esposa, segundo pessoas familiarizadas com o assunto.

Então, a Justiça deu a Ghosn o que ele considerou um insulto duplo no Natal, segundo pessoas familiarizadas com o assunto. Primeiro, negou seu pedido de ter contato com a esposa durante as festas de final de ano. E em uma audiência no dia de Natal, ele presumiu que o tribunal estava propositadamente atrasando o julgamento, levando-o a temer que este não ocorreria antes de 2021.

HUMILHAÇÃO – “Ele não podia ver sua esposa. Ele não conseguiu obter datas para o julgamento “, disse uma das pessoas. “Foi uma humilhação. Foi uma tortura moral”. Nos bastidores, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto, os conselheiros de Ghosn estudavam vários cenários para poupá-lo de um julgamento no Japão, onde mais de 99% dos indiciados são condenados, segundo estatísticas oficiais.

Advogados e familiares apelaram aos líderes franceses para intervir, por exemplo. Eles também analisaram o que aconteceria se ele fosse para a França, o Brasil ou os EUA. O Tribunal Distrital de Tóquio disse à imprensa japonesa que revogou formalmente a libertação de Ghosn sob fiança. Isso significa que o governo confiscará os 1,5 bilhão de ienes (US$ 13,8 milhões), em dinheiro da fiança que Ghosn pagou.

Não foi possível saber exatamente como Ghosn conseguiu escapar das autoridades japonesas para entrar no jato particular que o tirou do país. Ghosn estava morando em uma casa em Tóquio. Embora ele tivesse autorização para sair de casa, ele foi obrigado a permanecer no país até o julgamento.

RASTREAMENTO – Os dados de rastreamento de voo detalham apenas uma jornada que corresponde aos movimentos de Ghosn entre o Japão e o Líbano. Um jato executivo de longo alcance da Bombardier deixou o Aeroporto Internacional de Kansai, perto de Osaka (cerca de seis horas de carro a oeste de Tóquio) no domingo, às 23h10.

Depois de atravessar o espaço aéreo russo, o avião chegou na manhã de segunda-feira ao aeroporto de Ataturk, em Istambul, segundo dados de rastreamento de voo. Um jato menor operado pela mesma empresa, a MNG Jet Havacılık AS, com sede na Turquia, deixou o aeroporto em direção a Beirute pouco mais de meia hora depois, segundo os dados.

VESTÍGIOS – Uma pessoa que atendeu o telefone da MNG Jet se recusou a comentar. Não ficou claro a princípio se Ghosn teve que passar pela alfândega no aeroporto de Ataturk antes de embarcar para a segunda etapa de sua viagem a Beirute. Na quarta-feira, o ministro do Interior turco, Suleyman Soylu, disse, de acordo com o jornal Hurriyet, que não havia encontrado vestígios nos registros oficiais de uma escala de Ghosn na Turquia.

Ghosn entrou no Líbano com um passaporte francês e um documento de identificação libanês, de acordo com uma pessoa familiarizada com o assunto. Autoridades em Beirute disseram na terça-feira que ele chegou ao país legalmente e que as entidades competentes não tomariam nenhuma medida contra ele.

ESTADIA PROLONGADA – Ele agora enfrenta a perspectiva de uma estadia prolongada no Líbano, caso o Japão decida prosseguir com um mandado de prisão internacional. O Líbano não tem um tratado de extradição com o Japão.

Ghosn está no Líbano com sua esposa em uma casa da família, que possui um sistema de monitoramento, segundo pessoas familiarizadas com o assunto. Ghosn teme ser retirado à força e devolvido ao Japão.

VIGIADO – Uma mansão cor de rosa, em um bairro nobre que a Nissan havia comprado e reformado para uso de Ghosn, estava sendo vigiada na terça-feira por um carro da polícia e agentes armados. Ghosn, no entanto, não está hospedado lá, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto. Um comerciante ao lado da casa disse que a polícia não costuma ficar na rua, mesmo na véspera de Ano Novo. “Estamos aqui em uma missão para garantir a lei e a ordem”, disse um dos policiais.

Fonte: Folha de SP