Por João Batista Damasceno –
A comunidade jurídica e os brasileiros de diversos campos comprometidos com o Estado Democrático de Direito e com os princípios consagrados na Constituição de 1988 saudaram a indicação do ministro Flávio Dino, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para o STF.
Ao ministro Flávio Dino devemos a capacidade do desmonte do golpe que se urdiu no dia 08 de janeiro passado. Já tive a oportunidade de comentar neste espaço, em artigo anterior, o que poderia ter resultado se, ao invés da intervenção na Polícia Militar do Distrito Federal, tivesse o Governo decretado uma GLO e entregue o poder aos militares das Forças Armadas mancomunados com o atentado às instituições democráticas.
Em entrevista anteontem (30), o ministro Gilmar Mendes, do STF, resumiu o sentimento e pensamento dos que comemoraram a indicação que honrará o STF: é “uma pessoa de perfil jurídico sólido e de perfil político bem desenhado”, disse. O STF é o último recurso contra as violações aos direitos e, como guardião da Constituição, tem o poder de controle de todas decisões judiciais da Justiça brasileira, sejam das justiças comuns federal e estaduais ou das justiças especializadas: militar, eleitoral e trabalhista. Além disto, tem o poder de controle dos atos dos demais poderes da República. É, portanto, o órgão de cúpula do controle de constitucionalidade dos atos do poder político. A solidez jurídica que o ministro ostenta é indispensável. Mas igualmente a compreensão do papel político das instituições democráticas lhe favorecerá nos processos decisórios.
O controle de constitucionalidade, tal como o conhecemos, tem origem nos EUA. E decorreu da compreensão do funcionamento das instituições judiciárias e políticas pelo juiz John Marshall, na nascente nação estadunidense. Em 1803, a Suprema Corte estadunidense deparou-se com o caso Marbury versus Madison, onde questões de ordem política e jurídicas se entrecruzaram. Da solução deste caso, pelo juiz John Marshall, resultou o que hoje se denomina “controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos”.
Os Republicanos, liderados por Thomas Jefferson, derrotaram os Federalistas, liderados por Alexander Hamilton. Antes da passagem do poder em 1801, os Federalistas criaram cargos e fizeram nomeações que os Republicanos não pretendiam manter. Dentre os cargos criados estava o de Juiz de Paz do Distrito de Columbia para o qual o Presidente John Adams havia indicado ao Senado William Marbury. O Senado aprovara a nomeação. Os nomeados não haviam sido empossados, pois o Secretário de Estado (da gestão do Presidente Adams), John Marshall, não preparara os atos de posse. O novo Secretário de Estado, James Madison, se recusava a preparar os atos para a posse dos nomeados.
William Marbury impetrou uma ação contra James Madison requerendo sua condenação em preparar os atos e garantir as posses. John Marshall, ex-Secretário de Estado do Presidente Adams e agora ministro da Suprema Corte, anteviu que o deferimento da medida seria descumprido e que a Suprema Corte ficaria desmoralizada em seu nascedouro. O Presidente John Adams e seus auxiliares desdenhariam do judiciário e não dariam cumprimento às suas decisões. Sem nem ao menos um cabo e dois soldados ou uma horda preparatória da sua destituição, a Suprema Corte poderia vir a ser desconstituída. Compreendendo a armadilha que lhe armaram, o Juiz John Marshall lançou mão de argumento que o candidato derrotado à Presidência escrevera numa carta ao Povo de Nova York, que resultou no número 78 d’O Federalista. Tal argumento era de que as leis são elaboradas pelos representantes do povo e por um poder constituído. Mas as leis que disponham de forma diferente da Constituição, elaborada pelo povo, são com ela incompatíveis e não podem ser aplicadas. A Constituição prevalece sobre as leis.
O caso Marbury vs. Madison foi o primeiro momento, que se tem notícia, em que se deixou de aplicar uma lei, sob o fundamento da supremacia da Constituição. Foi a primeira vez em que se julgou causa desta natureza e se empreendeu resultado no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos passou a rever os atos do legislativo.
No Brasil, viemos a conhecer a possibilidade de controle de constitucionalidade das leis a partir da Proclamação da República. O Decreto 848 de 1890 dispunha que “O Poder de interpretar as leis envolve necessariamente o direito de verificar se elas são conformes ou não à Constituição, e neste caso cabe-lhe declarar que elas são nulas e sem efeito”. O controle de constitucionalidade das leis inexistia no período monárquico, isto porque a sanção imperial excluía qualquer vício nelas contido. Ainda assim, a Constituição de 1891 não conferia ao STF o poder de apreciar ações diretas de inconstitucionalidade. Somente em processos determinados se apreciava se o direito postulado deveria ser resolvido à luz da lei ou se esta contrariava a Constituição, caso em que aquela deveria ser afastada e aplicada a Constituição.
A atuação do ministro Flávio Dino no longo período no qual foi juiz federal, atuando – também – como presidente da associação de classe, bem como primeiro secretário geral do CNJ e sua notável atuação no campo político, como governador de estado e ministro da Justiça, demonstra o acerto da indicação presidencial. Com sua indicação ganha a democracia, ganha o Estado de Direito, ganham as instituições e ganha o povo brasileiro.
Enfim, ganhamos todos!
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.
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