Por João Marcos Buch –

Um dos episódios que mais marcaram minha carreira na magistratura, foi a acusação criminal que sofri, por ter garantido a integridade física de apenados na Penitenciária Industrial de Joinville, em Santa Catarina.

Não creio que esse fato, a esta altura, interesse a muitos, pois apenas aquilo que diz respeito a muitos, que é urgente, contemporâneo, é que possui essa característica. E, oras, quem quer saber de um juiz injustiçado?

Todavia, para tudo existe um tempo, inclusive para trazer à memória fatos passados. E assim o faço porque preciso acalmar o pássaro azul de Bukowski, que, de quando em quando, bate inquietamente suas asas em meu peito. E ele está lá, farfalhando, a me avisar que a hora chegou.

Pois bem, era o ano de 2019, mês de maio. Eu tinha acabado de chegar no Rio de Janeiro, onde ficaria por uma semana de férias. Aproveitaria para lançar outro livro, na Livraria Travessa do Botafogo e também continuar a escrita, sempre inacabada, de um romance. No primeiro dia na capital fluminense, um repórter de jornal de grande circulação em Santa Catarina me telefonou. Atento à imprensa, mesmo em férias, diante da sua importância para uma nação que se pretenda democrática, atendi a ligação.

O profissional foi direto no ponto e me perguntou se eu teria algo a declarar a respeito da acusação criminal feita contra mim. Nada sabendo, respondi que não estava entendendo a pergunta. Ele, então, dando-se conta de minha ignorância, contou que tinham requerido abertura de investigação criminal, tendo eu como investigado, sobre fato envolvendo aparelho celular entregue a detentos. Surpreso, pedi que me telefonasse mais tarde, pois tentaria descobrir do que se tratava. E descobri.

Eis o ocorrido: Um mês antes, a partir de denúncia de estrutura abalada, bem como princípio de incêndio, compareci na prisão e, em inspeção na ala do semiaberto, acompanhado de agentes penitenciários e de um dos gerentes da unidade, conversei com os detentos, que me relataram sobre curto circuito ocorrido na noite anterior, cuja situação era muito complicada. Como não havia possibilidade de eu entrar nas celas, na presença de todos, bloqueei meu celular, deixando no modo fotografia e pedi que um apenado, sob minhas vistas, fizesse as fotos. Ele, auxiliado por outro, que apontava para onde deveriam ser feitas as fotos, ficou um par de minutos com o aparelho e logo o devolveu. O material foi anexado aos autos instaurados e por ele requisitei a atuação do corpo de bombeiros e outras diligências. Imediatamente o corpo de bombeiros fez a vistoria e a direção prisional providenciou os reparos. Tudo foi registrado oficialmente. Entretanto, os fatos foram deturpados e geraram a insustentável acusação a que o repórter se referira.

Como juiz, já visitei muitas unidades prisionais pelo Brasil, inclusive de segurança máxima, já inspecionei espaços de privação de liberdade e enviei relatórios ao Conselho Nacional de Justiça. São anos de incursões, até mesmo em prisões fora do país. Ou seja, possuo experiência considerável sobre o sistema. Nesse contexto, sempre demandei do governo do Estado de Santa Catarina as melhorias necessárias para a vida dentro da prisão, com mínima dignidade. E também já requisitei que bloqueadores de telefone celular fossem instalados no complexo prisional sobre o qual exerço a jurisdição.

Então, por isso tudo, pode-se imaginar com que espanto fiquei sabendo, por meio de um jornalista, de que passara a responder uma notícia de fato criminoso.

Já não era novidade eu ter que me defender de ataques que colocavam em questão meus entendimentos jurídicos. Eu assimilava as investidas e preferia as receber como parte do meu ofício. Se eu desejava filtrar as leis pela Constituição e pelos tratados e pactos internacionais sobre direitos humanos e assim pertencer ao continente garantista, do direito penal mínimo, devia saber que nem todos concordariam e que muitos tentariam combater essas legítimas posturas. Mas estava enganado, não eram apenas embates legais, eram tentativas de me calar, de ceifar a prerrogativa irrenunciável da jurisdição. Colocavam minha honestidade em questão, tentavam violar meu caráter, havia uma cruzada, isso mesmo, essa a expressão que ouvi de um sujeito que depois nela ingressou, havia uma cruzada contra mim, cujo ápice foi aquela insana notícia de fato criminal.

Não se diz aqui que um juiz de direito não deva ser investigado e responsabilizado, caso tenha cometido atos ilícitos, entretanto, há um ônus muito profundo quando ele figura como investigado. Na época, constituí advogados e, diante da repercussão na imprensa, esclareci ao mundo jurídico sobre o acontecido. Profissionais e acadêmicos de todo o país se solidarizaram e, tamanha a indignação, fizeram um volumoso abaixo-assinado a meu favor. Recebi mensagens de apoio, abraços e gestos solidários de todos os lados.

Algumas semanas após, o tema deixou de ser notícia e publicamente arrefeceu. Mas, para mim, o processo lá estava, tramitando, gritando em meus ouvidos, presente desde o momento em que abria meus olhos ao acordar pela manhã até o último segundo antes de os fechar e cair, exausto, no sono, à noite.

Fui vítima de mentiras terríveis, que se espalharam como penas ao vento. Tudo era tão surreal, tão kafkiano, que havia ocasiões em que eu me flagrava achando que tinha errado mesmo, que efetivamente tinha cometido um crime, que tinha culpa! Precisavam me falar que não, que eu não havia errado, que meu proceder era constitucionalmente correto, que como juiz corregedor e responsável por garantir os direitos fundamentais, eu agira para proteger seres humanos encarcerados, que corriam risco de morrer queimados, dentro da mais absoluta legalidade.

Já contei que há vários anos superei 350 quilômetros do caminho de Santiago de Compostela, que no total possui mais de 700. Eu me tornei juiz aos 24 anos e, judicando em uma pequena, amigável e querida cidade do oeste do estado, houve um período em que me deslumbrei com o poder que exercia, não no sentido de cometer abusos, mas de achar que detinha superioridade moral sobre os outros. Dando-me conta desse reprovável comportamento, como havia acabado de ler sobre o caminho, resolvi realizá-lo. Foi assim que comecei a sentir o tempo e o espaço de outra maneira, com menor ansiedade e mais atenção naquilo que me cercava, com mais humildade. Descobri campos, trilhas, bosques, vilarejos e especialmente pessoas lindas, admiráveis, que me auxiliaram sem saber meu nome, quem eu era ou de onde vinha. A ajuda era um ato de humanidade, nada mais. Por elas eu tomei consciência da importância de minha família e de meus amigos e do quanto são eles que me fazem seguir por esse mundo que pode ser tão duro e cruel.

Quando a tempestade se formou sobre minha cabeça, naquele primeiro dia de férias no Rio de Janeiro, foi com base na minha história e na solidariedade recebida que permaneci são, ereto, de cabeça erguida, que não me tornei amargo.

Quase dois anos após, foi tudo arquivado. Entretanto, quando alguém sofre uma injustiça, o restabelecimento da justiça não reflete em comemoração ao injustiçado. A injustiça nunca deveria ter havido. Não tenho mágoas, porque a miséria e o desespero que os vulnerabilizados, as populações negras, as minorias sofrem desde o primeiro dia de vida é incomparavelmente maior ao que eu experimentei. Também não procuro vingança, procuro, isto sim, a graça do perdão.

E faria tudo novamente! Quando entreguei meu próprio telefone, bloqueado, para o detento realizar as fotos de locais precários, o simbolismo do ato foi pleno, por ele eu lhe disse: “ajude-me, eu vou melhorar o lugar em que vocês vivem, confiem todos neste que executa suas penas”. E eles confiaram, continuam confiando.

Hoje a ferida finalmente se fechou, tornando-se outra cicatriz que, diferentemente da que tenho na face, desta vez é invisível e muito mais potente, pois eternizada nas retinas de minha memória.

Sinto-me mais forte, mais enlevado, mais vivo do que nunca!

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no ConJur.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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