Por Lincoln Penna –
A palavra virulência tem o sentido de revelar a capacidade de um microrganismo patogênico se multiplicar num determinado organismo e provocar enfermidades. Essa mesma palavra acabou usada para designar um estado de violência econômica, social e política. Cabe, portanto, refletir sobre o momento em que se vive, sobretudo porque estamos em plena crise sanitária por conta do Covid-19.
Mas a sua aplicação no plano político do Brasil de Bolsonaro é igualmente adequada. A combinação desses dois vírus, o da nova cepa da família corona vírus com o vírus do extremismo alucinado dos que sustentam as ações do governo tem desencadeado a mais profunda e devastadora agressão aos brasileiros. Com isso, torna-se indispensável o recurso não somente à vacina como às práticas democráticas. Ambas, porém, ainda muito limitadas, acabam por estender os malefícios de suas presenças entre nós.
Ao se estabelecer esse estado de virulência os seus efeitos têm sido altamente perniciosos disseminando todo o tipo de perdas, desde as que reduzem progressivamente as esperanças de que dias melhores possam vir até as que subtraem entes queridos afetados direta ou indiretamente por essas desgraças. O pior é que esses dois vírus se realimentam. Pela atitude negacionista e pelo descuido proposital de quem deveria proteger o povo, as duas formas virulentas ganham espaço e disseminam seus efeitos perversos.
É virulento o contingente de óbitos alcançados num país que faz pouco tempo era tido como um dos exemplos de combate às crises viróticas. A ação proficiente do SUS, a ganhar prestígio pela efetividade de suas campanhas, enfrenta no governo que desencadeia o vírus do extremismo inconseqüente essa dupla batalha: contra a crise virótica e suas diversas variantes e a da política de negação da ciência em conluio com interesses antipatrióticos, aliança esta que precisa ser combatida para sanar o corpo social enfermo.
Historicamente os estados violentos a empregar a repressão como instrumento de legitimação do poder se caracterizam pelo ataque à cultura e à ciência e aos processos de formação de cidadania via sistemas educacionais. A esses estados não interessam o povo bem informado, culto no sentido de estar sintonizado com os avanços da humanidade e solidários com outros povos. Essa postura de confronto a disseminar o ódio aos estrangeiros foi um dos traços do nazi fascismo, cujos valores não foram sepultados com o fim desses regimes.
São princípios que ainda hoje são usados para marcar a diferença em face da cultura de convívio democrático entre os povos, definitivamente rejeitada pelos seus ideólogos.
Um estado de virulência costuma ser deliberadamente um estado de rejeição às diferenças, ao exercício do contraditório, à integração de etnias, de convívio com traços culturais distintos dos nossos, de harmonia de cultos religiosos, de apego à diversidade de gêneros e a biodiversidade inerente à natureza. Esse estado virulento é o maior aliado das pestes que assolam a vida da espécie humana em particular e precisa de uma vacina que impeça sua proliferação. Esta vacina existe. Precisa ser mais expandida, mais incluída do ponto de vista de seu alcance social de maneira mais generosa.
Essa vacina atende pelo nome de democracia. E não precisa de sobrenome ou de apelidos, pois através dela é que se pavimenta o caminho para a construção de sociedades solidárias, em condições de sustar eventos como as crises provocadas por vírus dessas duas espécies, que nos atormentam. Aliás, como me disse um sapateiro que esteve preso comigo na Ilha das Flores, lá pelos idos do ano de 1969, o socialista não é aquele que é solidário com o seu semelhante? Disse que ele tinha definido com propriedade o sentido de socialismo. Afinal, partilhar o que é comum a todos difere fundamentalmente do modo pelo qual agem as sociedades orientadas pelo senhor mercado. Isto é, as sociedades capitalistas.
Para se chegar ao reino da comunhão e do respeito às liberdades é preciso remover esse estado de virulência que se propõe a permanecer vigorando e nos trazendo infortúnios e desagregação entre os brasileiros. E se estendendo aos demais povos diante de manifestações de seu princípio ativo, a virulência.
Não é mais possível assistir impassível os atos de violência desencadeados nas comunidades pobres das grandes e médias cidades em nome do combate a criminosos, quando o crime maior se encontra no próprio estado que age com descontrole e com desapreço a cidadãos entregues à própria sorte. Com esses atos típicos de chacinas previamente orquestradas criam-se mais tensões e gera também desdobramentos com potencial de retaliação ainda maior, que podem nos levar ao aprofundamento do estado de virulência.
Saibamos sair dessa situação e cuidar da vida das pessoas para que caminhemos na direção de um estado que respeite a vida de nossos semelhantes, bem como a todas as vidas existentes na Terra. Do contrário, nosso futuro estará comprometido pela incapacidade de superação de nossas adversidades.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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