Por José Carlos de Assis –
Ficou evidente, pelos pronunciamentos de ontem do presidente Lula e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que há óbvias divergências conceituais e práticas sobre como ambos avaliam a questão da taxa de juros. O presidente é factual, ou seja, a sociedade brasileira não tolera mais taxas de juros básicas no nível em que se encontram. Já Haddad tenta inutilmente conciliar pela retórica a ação do presidente do Banco Central com os justos protestos do presidente.
Acontece que é impossível conciliar o que é contraditório em sua própria natureza. Se há um imperativo de baixar a taxa de juros é inevitável mudar a política monetária. Não é simples, porque se acontecer o chamado “mercado” desencadeará um processo de sabotagem contra o governo. Só um ministro da Fazenda que entenda efetivamente do paradigma em que vivemos há décadas, ou seja, do monetarismo radical, terá força para enfrentar o “mercado” além apenas de palavras.
Que se entenda, portanto, inicialmente, o que significa “monetarismo”. Na origem, foi a teoria desenvolvida nos Estados Unidos por Milton Friedman para indicar os meios de assegurar a estabilidade permanente de uma economia capitalista. Em resumo, bastaria, para isso, que o suprimento de moeda nova na economia pelo Banco Central fosse alimentado a uma taxa fixa, que automaticamente garantiria uma equivalência monetária entre oferta e demanda no mercado, impedindo a inflação.
Friedman mudou de ponto de vista no fim da vida, mas, como acontece em muitas situações no campo doutrinário, continuou tendo seguidores nos EUA e no mundo, alinhados a suas posições originais. Os mais influentes foram os tecnocratas do FMI, que nos empurraram a doutrina monetarista goela abaixo, a partir da crise da dívida externa no início dos anos 80 do século passado. Daí para cá, não saímos desse marco, embora o próprio Fundo, segundo dizem, tenha mudado de opinião.
Na prática, o “monetarismo” sustenta que para restabelecer o equilíbrio de uma economia que esteja em desequilíbrio externo (dívida ou déficit no balanço de pagamentos) ou interno (inflação) é preciso cortar na demanda agregada. É este o ponto. A consequência dessa política de corte da demanda é um processo de estagnação permanente. Ela desestimula a produção e o emprego, reduzindo o consumo, mediante, principalmente, o aumento da taxa de juros.
Cerca de quatro décadas de “monetarismo” viciaram os economistas brasileiros numa concepção equívoca de economia política.
Mesmo aqueles que se consideram “progressistas” acabam na vala comum dos conservadores e ortodoxos, com pavor de desagradarem o “mercado”. E é isto que, em última análise, estabeleceu entre nós a fronteira do que chamei, num artigo anterior, de economia da “produção” versus “economia da especulação”, a que, nesse último caso, temos estado submetidos.
O que seria, porém, uma “economia de produção”, a qual está, obviamente, nos desígnios do presidente Lula e de que Haddad parece não entender? Em tese, significa restabelecer o equilíbrio da economia pelo lado do aumento da oferta, e não da redução da demanda. No caso do reequilíbrio externo, gerando excedentes exportáveis com investimentos produtivos; no caso do reequilíbrio interno, aumentando a oferta de bens e serviços no mercado, também com investimentos.
Não se pense, porém, que seja um caminho fácil. Mudanças de paradigmas nunca são fáceis. Para aumentar os investimentos é preciso que o sistema bancário público e privado amplie os empréstimos a juros baixos, e isso não acontece sem uma política deliberada que comece no orçamento público. Em uma palavra, é preciso que o governo gaste mais e melhor. Se necessário, realizando déficits públicos, e aplicando o dinheiro em empreendimentos produtivos responsáveis.
Infelizmente, não há como fazer omelete sem quebrar ovos: a consequência imediata do aumento do déficit público produtivo é, pelo lado monetário, o aumento das reservas bancárias e da dívida pública, reduzindo os juros. Minha querida amiga Maria Lúcia Fatorelli não gosta muito de dívida, mas é inevitável. Porém, aumentar a dívida não é o pior dos mundos. Pior é a estagnação. Se a dívida for para financiar o crescimento, a variável relevante, a relação dívida/PIB, vai cair com o tempo. E basta.
Considerando todos esses aspectos da economia, é fundamental que o presidente Lula mantenha sua determinação de forçar a redução dos juros; porém, com um deslocamento marginal de metas. Em lugar de tentar reduzir o tamanho absoluto da dívida pública, contente-se em reduzir seu tamanho relativo e os juros. Isto é, o relevante, para uma análise honesta das perspectivas da economia do país, é a relação dívida/PIB, e não o tamanho da dívida em si, desde que a juros baixos.
Entretanto, não se deixem enganar. Haverá sabotagens, das quais a tentativa de golpe de 8 de janeiro foi apenas um ensaio. O governo deve se prevenir, com fatos e feitos. A meu ver, nesse início de administração, é absolutamente fundamental o aumento da produção agrícola e de bens e serviços populares em geral. A eleição foi ganha com a promessa da eliminação da fome de 33 milhões e da insegurança alimentar de outros tantos milhões. É uma promessa que tem que ser cumprida.
A eliminação da fome e da insegurança alimentar reduzirá o espaço da instabilidade social, econômica e política. Em suma, o espaço das conspirações. Temos muitas deficiências na economia e na sociedade, algumas graves – como no campo da tecnologia -, mas nenhuma é maior do que essa, e merece maior atenção dos que têm a seu cargo o planejamento da economia. Um povo bem alimentado deixará de ser massa de manobra dos conspiradores e financiadores de golpes.
Caberá ao presidente Lula convencer a maioria do Congresso de que não bastam acordos políticos. São necessários acordos na economia, sobretudo em relação às políticas monetária, fiscal e agrícola, na direção acima indicada. Ele é um mago da persuasão. Mas o fato é que acordos políticos derreterão se não estiverem alicerçados na estabilidade social.
Isso significa não apenas garantir o aumento real da renda dos pobres, mas desconcentrar a renda em termos gerais, o que implica reduzir os juros.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Autor de “A Era da Certeza”, que acaba de ser lançado pela Amazon. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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