Por Lincoln Penna –
Em tempos a exigirem à construção de consensos mínimos, com vistas à superação dos obstáculos e desafios existentes na arena política brasileira, quanta falta nos fazem San Tiago Dantas e Roberto Morena.
O primeiro, vindo de uma curta experiência no movimento integralista, ao passo que Morena, de uma longa trajetória dedicada à classe operária, militante comunista exemplar no trato das diferenças entre sindicalistas e políticos em geral.
Francisco Clementino de San Tiago Dantas foi um brasileiro honrado e dedicado ao seu país. Jornalista, advogado e professor foi também político, ao se destacar como chanceler e ministro da Fazenda do governo de João Goulart. Nasceu no dia 30 de agosto e faleceu aos 53 anos, seis meses após o golpe de 1964. Cabem algumas linhas suficientes para revelar sua profícua participação na vida pública do País para que sua imagem de democrata seja lembrada, sobretudo nesses tempos tão sombrios.
Já Roberto Morena viveu mais tempo, porém sempre vigiado e marcado pela repressão em função de suas atividades políticas no sindicalismo e na direção do Partido Comunista. Preso várias vezes jamais se curvou diante dos desafios assumidos em defesa da classe operária para a unidade das forças progressistas. Faleceu no exílio, em 1978, aos 76 anos de idade e deixou uma legenda reconhecida até mesmo pelos seus adversários. Como deputado federal na legislatura de 1951 a 1955, era conhecido como grande orador e articulador sendo por isso mesmo comparado a uma bancada, tal a força que manifestava em defesa de suas ideias.
O que pode ser ressaltado dessas duas trajetórias políticas é o fato de terem surgido nos lados extremos da configuração política e ideológica do Brasil anterior a 1964, quando o golpe desse ano encerrou um período em que a política contava com líderes comprometidos com suas ideias e capazes de transigir, sem conciliar, de modo a construírem arranjos possíveis. A considerar o espectro ideológico, um surgiria pela extrema direita, a da Ação Integralista Brasileira, e o outro, pela esquerda revolucionária a desafiar as estruturas da grande propriedade e dos interesses de uma burguesia conservadora e subserviente ao imperialismo.
Foram dois gigantes que fizeram história e cuja lembrança os engrandece no instante em que vivemos o que se poderia chamar de miséria da política, cujo maior símbolo é a do caricato homem que se encontra à frente da presidência da República. Mas não é um mero desvio da rota que a partir de 1964 “endireitou” o país, porque se trata de um projeto de aniquilamento de nossa soberania, tão fortemente sustentada pelos dois exemplares preciosos que perdemos. Dantas e Morena; vivos estivessem, se empenhariam em articular as forças do civilismo civilizatório para a remoção desses grupos, que momentaneamente se tornaram dirigentes com vistas a demolir preciosas conquistas no âmbito de nossa democracia ainda restrita.
San Tiago Dantas foi dos grandes artífices da política externa independente e talvez o mais brilhante na defesa dessa política a qual herdou do governo Jânio Quadros e dotou-a de um significado todo especial, já que a entendeu como parte integrante da política das Reformas de Base do presidente João Goulart. No curto período de tempo em que assumiu o cargo de chanceler (de setembro de 1961 a julho de 1962), imprimiu com vigor a tarefa de levar adiante a orientação de Goulart, ainda durante o sistema parlamentarista de governo.
Ao aderir ao trabalhismo, sendo eleito deputado federal pelo PTB e inteiramente voltado para a execução da política das Reformas de Base do presidente João Goulart, Dantas adotou uma interpretação própria na política externa. Ao adotar a expressão “coexistência competitiva”, Isto é, tomando partido da defesa de interesses que nos importava sustentar, indiferente às demandas dos dois blocos à época da Guerra Fria comandados pelos EUA e a URSS. Era a demonstração das prioridades de nossa soberania, uma vez que não poderia existir uma política externa independente, não alinhada, sem o princípio fundamental da defesa de nossa independência.
Dantas defendeu sua tese ao manifestar-se em duas ocasiões, ao reatar as relações diplomáticas com a URSS, contrariando as pressões norte-americanas nesse sentido; e ao votar contra o isolamento de Cuba e sua expulsão na Organização dos Estados Americanos (OEA), logo após o governo cubano ter se assumido como socialista para o desatino dos representantes dos EUA. Talvez por essa atitude de autonomia no trato da política externa é que foi considerada uma “ameaça” aos poderosos interesses de Washington. Como ministro da Fazenda de Jango, soube honrar a dignidade de um governo num momento em que estava em curso o golpe que derrubou o governo popular de João Goulart.
De 1931 a 1937 foi militante integralista, tendo dirigido o jornal A Razão por um ano. E de 1955, quando ingressa no PTB, até sua morte, foi um trabalhista consciente da importância de um projeto nacional desenvolvimentista capaz de incluir os mais desvalidos, sem deixar de lado o seu tino político e sua conduta como um dos intelectuais a serviço dos interesses do verdadeiro patriotismo que dispensa o uso dos símbolos nacionais, como se vê hoje em dia pela malta que sustenta o mito do nada.
E ao final do primeiro ano do período presidencialista de Jango, Dantas começou a articular as correntes políticas próximas do governo com o objetivo de evitar a sua derrubada. Tinha a convicção de que A Reformas de Base tinham fortes e poderosos inimigos internos e externos, daí a tentativa de organizar uma Frente a incluir desde os mais conservadores membros do PSD até os comunistas. Em janeiro de 1964, concluíra a redação de um programa mínimo voltado para a formação de um governo de frente única, mas o golpe já estava pronto para ser executado.
Em paralelo nesse cenário político, mas já com o golpe desfechado e distante do país, Roberto Morena defendia o entendimento das forças que não compartilhavam com o regime imposto ao país.. Ele, que representou a corrente de sustentação do governo Jango contra os que o consideravam conciliador demais. Morena percebera o erro do PCB em criticar de forma contumaz um governo favorável ao povo, de certa forma reeditando o que ocorrera no segundo governo de Getúlio Vargas, quando o partido junto com a UDN centrou fogo no governo de forma errática e sectária.
Afastado pelo exílio das lides políticas, Morena reunia-se com brasileiros igualmente exilados e discutia os caminhos para a restauração da democracia. Tinha fé nisso, como me dissera sua esposa ao me dar entrevista junto ao filho, que resultou no livro que tive o prazer de escrever com o título de Morena, o militante, pela editora Expressão Popular.
Esses dois nomes honram a história política brasileira, seja pelo talento de suas atividades dedicadas exclusivamente aos interesses nacionais, populares e democráticos, ou pelo fato de terem dado suas vidas de forma digna e desinteressada ao país, distante, portanto, do que ora se assiste em nosso triste mundo da política brasileira.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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