Por Ricardo Cravo Albin –
Oscar Niemeyer sempre foi um dos meus personagens prediletos no Rio.
E nos fizemos amigos quando o convidei para fazer palestra na Faculdade Nacional de Direito, em momento tormentoso nos anos 60 quando alguns colegas foram detidos pela policia por aderirem a uma greve contra o aumento do bonde por alguns centavos. Oscar foi direto em sua fala com os alunos: – Alguns foram afastados dos bancos escolares por centavos, reles centavos. Mas vocês, com essa truculência inominável, ganharam a simpatia de milhões. A começar por este arquiteto que vos fala.
A sutil equação entre os homens que entram na história e seus contemporâneos gerou uma observação de Mallarmé que cabe registrar por ocasião desta saudação a Oscar Niemeyer: “os raríssimos homens que ajudam nossa triste humanidade a dar passos a frente jamais se dão conta disso; ao contrário, negam sua excelência com modéstia constrangedora, quase irresponsável.”
O grande arquiteto carioca, não fosse sua apetência pelo ato de viver e seu gosto pelas mulheres, bem que poderia envergar uma bata monástica, tão despojados foram os seus hábitos em relação ao dinheiro, tão parcas são suas considerações sobre a importância e a universalidade de sua obra monumental, tão inabaláveis foram suas opções políticas pelos desvalidos e sua fé religiosa pelo socialismo.
Se Oscar poderia, ou não, ser um padre, quem sabe um São Tomás de Aquino da arquitetura, pouco importa. Cabe registrar aqui o orgulho que todos necessariamente sentimos dele.
Aliás, assistindo há tempos a uma longa entrevista concedida à Globo News, pude observar, mais uma vez, os cuidados e a delicadeza que ele sempre deferiu ao Rio, cidade onde nasceu. E nem é para menos, quando se imagina que Oscar viveu a amabilidade do Rio nos anos 20, 30 e 40, possível época de ouro da cidade, ao menos na inteireza de sua arquitetura.
Pra início de conversa, o arquiteto assenta a sua lupa de artista (et pour cause, profeta) sobre a destruição do centro carioca, dotado de equilíbrio e beleza, com seu casario sedimentado em três estilos, colonial, imperial e art-nouveau. Quem destruiu tal jóia, que qualificava o Rio como um dos centros mais belos do mundo? A especulação imobiliária selvagem aliada à corrupção e constrangedora falta de cultura dos administradores cariocas.
A sanha desse sinistro binômio infelicitou, a partir dos anos 50 (e com especial voracidade nas décadas 60, 70 e 80), os bairros cariocas, a começar por Laranjeiras e Cosme Velho – as ruas das Laranjeiras e Cosme Velho foram impiedosamente sacrificadas e casarões magníficos eram derrubados a cada mês para dar lugar a prédios horrendos e sem nenhum caráter. E a terminar é claro, pela imbatível orla do Flamengo – Botafogo – Copacabana – Ipanema – Leblon, filé-mignon para a mais sórdida e emburrecedora especulação, em que sequer normas básicas de arquitetura foram observadas.
Acho que a Urca foi milagrosamente poupada nos anos 80 por interferência corajosa do Prefeito Roberto Saturnino, quando já alguns espigões anunciavam o desastre para o bairro, hoje salvo, exemplo e modelo que nos resta de excelência e de boa qualidade de vida no Rio.
É claro que a tragédia carioca da especulação imobiliária logo daria seus frutos aberrantes: a poluição das praias e, sobretudo, o caos do transporte, entre muitos outros.
Sobre as favelas cariocas, a opinião que ouvi de Oscar Niemeyer na tevê qualificam o humanista que ele jamais deixou de ser: “- Já que existem, que sejam melhoradas e transformadas em bairros decentes, onde a dignidade humana possa ser resgatada e onde as pessoas possam ser mais felizes.”
É isso aí, “onde as pessoas possam ser mais felizes”.
Ponto crucial da questão do ser e do existir de qualquer cidade que se quer decente. O que, infelizmente, não vem ocorrendo – e a observação é só minha – quando o Rio vive – já por muitas décadas – um estágio de violência urbana que não pode mais ser tolerada.
O que quero aqui é louvar Oscar Niemeyer. Aliás, o último trabalho com que o arquiteto mimoseou o Ri foi uma jóia capaz de reanimar e encher de beleza as duas cidades que se faceiam, ambas plantadas às margens da Baía da Guanabara. Refiro-me ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói. Arrojado, simples e naturalmente genial, este projeto resume com perfeição a volúpia criadora do arquiteto, tão bem expressa numa frase balbuciada com a proverbial modéstia na entrevista que deu para mim no Museu da Imagem e do Som: “- O que me interessa é a busca da originalidade, daquilo que as pessoas não tenham ainda feito nem imaginado como forma de beleza.”
Originalidade, de certo, que ele empregou no trabalho que há 30 anos lhe encomendei e a Lucio Costa, o álbum com seis gravuras originais de cada um dos construtores de Brasília, intitulado “Brasília para sempre” feito em parceria com a Lithos de Guilherme Rodrigues.
E que proponho aqui expor no museu de Niterói ainda esse ano.
Abençoado Oscar Niemeyer, filho dileto de Deus e dos Céus. Que ele teimava, debalde, em negar.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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