Por Ricardo Cravo Albin

“Deus vê tudo e tudo sabe/Mas não sabe calcular/A hipocrisia que cabe/Dentro deste seu olhar.” (Noel Rosa, em Verdade Duvidosa de 1935)

Sim, esses versos poucos conhecidos do poeta carioca Noel Rosa bem que poderiam emoldurar paráfrase da situação atual no Rio e no mundo. Segundo o musicólogo Almirante me revelou no Museu da Imagem e do Som, ao lhe indagar sobre a que namorada o poeta da Vila impunha o insulto de hipócrita, a resposta me surpreendeu: – “A seu Adolfito…Noel embora ausente ao esbarrar com assuntos políticos, por vezes dava seus pitacos. Estávamos no Café Nice, quando o jornalista/poeta Orestes Barbosa bradou à nossa mesa indignação contra o discurso de Hitler, a que ambos, ele e Noel, tinham acabado de assistir no cine-jornal do Cine Pathé”. O Almirante, minucioso, concluiu que o autor de Chão de Estrelas alertava em especial para o que lhe parecia o olhar tresloucado do ditador Hitler. Noel, mudo no seu cantinho, escreveu esses versos, disfarçados em queixume a um possível amor desleal.

Rogo-lhes desculpas pela divagação. Mas como não registrar que o Brasil começou a mudar com a derrota de Trump, cujo falar truculento e olhar transverso aparenta alguma semelhança com o nazista? Bolsonaro tomou o americano como modelo e o copiou em detalhes. Hoje mesmo foram localizadas dentro do Planalto notas que insinuam o atraso da apuração das eleições por conta de irregularidades da máquina eleitoral, argumento já levantado sem provas pelo Capitão desde sua eleição há dois anos, e repetido a exaustão por Trump como pretexto à sua derrota. Que com desprezo imperial nega a vitória de Biden, impondo-lhe grosserias a não acabar. O que segundo a imprensa mundial, provoca o descrédito na democracia mais antiga do mundo. E faz o grande país do norte proceder como reles Banana Republic, plena de humores bastardos.

Assinalo que Trump faz ruir modelo de governança democrática, sustentação do capitalismo mundial e aval de suas forças armadas.

Desde que me entendo por gente, o Exército do Brasil sempre se aliou a seu congênere americano, intercambiando cursos e teorias militares, estágios de oficiais e até maquinaria bélica. Até porque ambos sempre estiveram no mesmo bloco em qualquer dissenção mundial.

Portanto, a canoa em que Bolsonaro embarcou é inconsequente. Não apenas fica ao lado do perdedor das eleições nos Estados Unidos, negando sua derrota, mas arrasta todo descrédito sobre Instituições seculares do mundo ocidental.

O maior problema de Bolsonaro é ter acumulado atos temerários contra a ainda tenra democracia brasileira, como incentivar meia dúzia de acólitos da chamada linha ideológica – rude esboço de apoiadores nazifascistas – que se postam desde o início do governo à porta do Palácio da Alvorada para estimular o Presidente a dar um golpe contra os poderes legislativo e judiciário.

Não bastassem esses esbirros que intimidaram o país por meses, o despreparo da gestão bolsonarista fica cada dia mais claro, setor a setor. Disparates irrompem a cada semana, acentuando um conjunto de erros que acabou por impor ampla derrota nas eleições de domingo. Como acentuou o Washington Post, até parece que os Presidentes dos Estados Unidos e Brasil se articulam a desfilar pelo mundo em “marcha-unida”. O que é a pura verdade, a partir do negacionismo insano de ambos à pandemia, motivo da derrota dos dois nas urnas, na opinião de todos os analistas.

A situação do nosso presidente torna-se ainda mais frágil quando o Comandante do Exército General Pujol obrigou-se há dias a reiterar o óbvio: as Forças Armadas têm no Chefe do Executivo o Chefe Supremo, desde que a essência delas seja respeitada, seu compromisso é com o país institucional e jamais com políticas partidárias, inclusive as defendidas pelo Presidente.

A gestão desses assuntos delicadíssimos é erraticamente conduzida por Bolsonaro admitindo insultos e brigalhadas entre seus próprios ministros. Onde já se viu um ministro débil como o suspeitíssimo do Meio Ambiente ousar apelidar um General do Planalto de Maria Fofoca? Onde já se viu um Presidente Capitão ousar desprestigiar seu “indemissível” Vice, General de quatro estrelas, já desrespeitado pelo Planalto na sua ação em defesa da integridade das florestas, de que é, felizmente, o coordenador de defesa da Amazônia.

Em suma, ao que deduzo pelas análises de toda a imprensa daqui e de fora, Bolsonaro foi o maior perdedor das eleições de domingo, além de sua popularidade estar em declínio acentuado.

O colunista Merval Pereira resumiu com precisão no Globo de hoje – “o Presidente, em claro declínio, só recuperará sua popularidade se entregar de novo o auxílio emergencial aos milhares de brasileiros famintos e desempregados. Mas para isso ele quebraria o país e provocaria inflação insustentável.”

Por muito menos Getúlio foi deposto em 1954 e Jango dez anos depois.

Até parece que a provocação do comício dos marinheiros da Central em 1964 se repete dentro do Planalto com a insanidade dessa tal “Ala Ideológica”, tosco arremedo de soluço mussolínico, sem pé nem cabeça.

Já que o Capitão apoiou campanha do rejeitado Prefeito do Rio, apresentando apenas brados de aleluias todo o tempo e bordões a invocar Deus como cabo eleitoral, uma quase blasfêmia, vale repetir o primeiro verso estampado nesta crônica dispersa e um tanto indignada – “Deus vê tudo e tudo sabe…”.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.