Por Lincoln Penna

“Brasileiros, chegou a hora de realizar o Brasil”. (Mário de Andrade)

Em situação de constrangimento em face do autoritarismo sempre fui a favor da construção de frentes amplas contrárias aos que conspiram ou praticam restrições às liberdades. Assim foi durante a ditadura de 1964 a 1985, como presentemente postulo que se articule um amplo movimento que impeça a continuidade de um projeto de desmonte de conquistas duramente alcançadas e algumas delas consagradas pela Constituição de 1988.

Ocorre que não dá mais para permanecermos indiferentes à remoção de velhas e carcomidas estruturas a nos governar através de um verdadeiro pacto que despreza as ações que se dirijam às mudanças que há anos temos postergado. Seja em nome de uma conciliação, que carregamos como um fardo unicamente para evitarmos o pior, isto é, o retrocesso político, como se a convivência com as velhas ordens não causassem igual mal, e com isso somos cúmplices desse estado de coisa.

Uma Frente Ampla torna possível a derrota de Bolsonaro, e sua composição se torna fundamental. Mas o que fazer uma vez vencida a etapa necessária de superação desse quadro de regressão absoluta a que a ação de desmonte das frágeis instituições democráticas tem proporcionado? A pergunta faz sentido quanto ao destino dessa aliança de forças tão distintas no plano ideológico. Sobretudo se temos a convicção das tarefas a serem executadas na direção de uma política efetiva de transformação, uma vez superado os atuais governantes, pois não basta apenas a defesa de uma democracia de fachada, sem avançarmos no caminho de reformas estruturantes.

Certa ocasião quando estávamos ainda em meio à resistência contra a ditadura, lá pelos idos da década de 1970, perguntei a um velho camarada como era possível aliarmos a gente que objetivamente nada tinha a ver conosco, se uma vez derrotado os governos ditatoriais eles estariam mais afeitos a composições conservadoras do que a pautas mais progressistas? E ele me respondeu, com a paciência que o caracterizava como lúcido combatente, que num processo político precisamos caminhar de acordo com as nossas possibilidade e prioridades. No momento, o que interessava na ocasião era nos livrarmos da ditadura. Se a correlação de forças for favorável dizia, nós vamos em frente. Depois, é depois, vamos examinar o que fazer. E assim aconteceu a tal transição para o retorno das liberdades democráticas.

Negociada? Sim, aquela transição foi, sem dúvida, porque à época não se tinha uma saída consensual. A alternativa das armas não tinha como ser bem sucedida. Daí, a derrota e o sacrifício de inúmeros patriotas, que deram a vida pela causa da libertação de nosso povo. Hoje a situação é diferente. Não temos uma ditadura assumidamente escancarada, mas temos o peso insuportável do poder que domina e permanece explorando o nosso povo, com o requinte de se apresentar como defensores da moral e dos bons costumes. E mais ainda, como lutadores contra a corrupção, quando na verdade são os que a praticam na calada da noite, como sempre fizeram.

Penso que diante desse quadro a configurar um dilema temos de atravessar dois momentos e não podemos perdê-los e muito menos confundir as prioridades.

O primeiro momento é o da união nacional contra o mal que assola o país e as liberdades, isto é, aquela que deve resultar na derrota de um governo impatriótico e que tem infelicitado o povo pelo ódio que demonstra ao conjunto da ciência, cultura e educação. Além de total desprezo pela saúde pública, para ficarmos em alguns exemplos mais notórios e significativos quanto ao mal que tem feito a política oficial. Acresce o fato de abrir mão de nossa soberania, como se a ameaça maior fosse a velhusca ameaça do comunismo e não verdadeiramente a cobiça que ronda o país.

O segundo movimento é o de constituirmos um agrupamento de forças sociais e políticas em condições de formatar um projeto alternativo, sem o qual não basta a boa intenção de ninguém. Este núcleo organizado em torno desse projeto deve mirar o futuro da nação a partir de sua realidade histórica e voltar-se para a construção de uma nova sociedade. É bom lembrar Mário de Andrade no instante em que estamos próximos de mais um centenário de nossa independência como nação. Na época do primeiro centenário essa convocação fez avançar muitas disposições que resultariam em iniciativas altamente estimulantes.

Na aproximação de nosso bicentenário da Independência essa frase é oportuna. Em breve vamos retomá-la porque ela identifica um momento de superação tão necessário hoje em dia passado um século. Mário não foi nenhum revolucionário assumidamente senão um indivíduo que soube interpretar o seu tempo. Tempo de saturação de uma ordem envelhecida e exausta em face de uma nação que surdamente exigia novos horizontes. Às vezes as revoluções se iniciam com percepções que nos conduzem ainda que por vias pacíficas a mudanças de vulto, só enxergadas com o passar do tempo.

A hora da execução dessa dupla tarefa está na ordem do dia. De um lado, a da remoção de quem busca destruir a civilidade e, sobretudo, a nossa ainda precária democracia. De outro, a de buscar através de um projeto transformador edificar uma nação digna desse nome. É um desafio a ser enfrentado com coragem e determinação, sem ódios e ressentimentos, mas com a certeza de que é preciso que se ponha em prática esse dever de casa antes tarde do que nunca.

Mais do que elucubrações altamente criativas torna-se necessário a ação prática. Aquela que se faz fazendo, no sentido de não deixar que as pessoas venham a esmorecer. É urgente a tarefa de se voltar aos mais necessitados. Estes já reúnem multidões a se arrastarem sem eira nem beira, desiludidos, e cada vez mais sem esperança. Restituí-los à vida e dar-lhe régua e compasso para prover suas necessidades não é caridade. É uma exigência cidadã. É um dever, trazê-los à luta por uma existência que seja redentora para todos.

É agora ou nunca.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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