Por Gabriela Moura de Oliveira –

A Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) é fruto da conquista das vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher na luta pelo reconhecimento de sua voz. Isto porque a figura feminina desde sempre teve sua vontade silenciada pela supremacia masculina, sendo obrigada a se submeter às obrigações do lar sem qualquer liberdade de escolha.

A mulher é tida como um objeto ou símbolo de poder, sendo uma espécie de capital simbólico que se concentra em benefício das forças de dominação, perpetuando o poder dos homens.1

Por essa razão, entende Bourdieu que a violência simbólica está associada ao homem e a mulher, uma vez que a prática da violência não é percebida por já ter sido agregada aos seus hábitos.2

Contudo, com o passar do tempo, o empoderamento feminino ganha forma e as mulheres passam a impor o seu espaço na sociedade. A libertação das vozes femininas é um fenômeno marcado por muita luta e opressão, mas com resultados confortantes em nossa legislação como a própria Lei nº 11.340/2006.

Ocorre que a proteção conferida pela lei não foi suficiente para preservar a integridade e a dignidade da mulher em sua integralidade, em virtude da existência de consectários legais não vislumbrados pelo legislador, os quais, de forma direta ou indireta, permitem que o agressor continue a violentar a vítima.

Não obstante a inovação legislativa em prol da mulher, a proteção enfatizou a integridade física e psicológica da vítima no âmbito criminal, não exaltando, nesse primeiro momento, outros reflexos de natureza cível.

A Lei nº 13.871/2019 alterou a Lei Maria da Penha destacando a possibilidade de compensação pelos danos causados pelo agressor. Todavia, as consequências no âmbito cível de cunho patrimonial comum do ex-casal, sobretudo, quanto à posse e propriedade comuns, carecem de atenção legislativa.

Isto é, mesmo com a efetivação da Lei Maria da Penha, a mulher ainda é vulnerável a própria legislação esparsa, uma vez que determinadas previsões legais autorizam que alguns institutos sejam aplicados mesmo quando de encontro às medidas protetivas conferidas.

É o que pode acontecer posteriormente ao deferimento de uma medida protetiva de afastamento do lar, quando o agressor pleiteia os seus direitos relativos à posse ou a propriedade do lar conjugal. A exemplo, se observam os artigos 560 e seguintes do Código de Processo Civil (ação de reintegração de posse); os artigos 1.210 (esbulho possessório) e 1.228 (ação reivindicatória), ambos do Código Civil, e até mesmo, o artigo 1.319 do mesmo diploma legal (indenização por uso exclusivo do imóvel comum), objeto de análise anterior.

Da mesma forma, há possibilidade de intervenção no patrimônio da vítima por meio de pedidos de pensão alimentícia por parte do agressor, quando hipossuficiente e dependente econômico da ex-companheira e até o esvaziamento de contas correntes conjuntas após a aplicação das medidas protetivas.

De acordo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW) no âmbito da ONU, em seu artigo 3º, é possível verificar que:

Os Estados-Partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.

Foi elaborada pelo Comitê da CEDAW em 1992, a Recomendação Geral nº 19 em detrimento da omissão dos Estados-Partes, a qual estabeleceu que a violência com base em gênero é uma forma de discriminação que impede a mulher de usufruir de direitos e liberdades quando comparada com o homem, como por exemplo, quanto ao direito à vida; a não ser submetida à tortura ou tratamento ou punição cruéis, desumanos ou degradantes; à igualdade quanto à proteção, de acordo com as normas humanitárias; igualdade na família; à igual proteção sob a lei, dentre outros.

A Recomendação Geral nº 35 apresenta as obrigações gerais dos Estados-Partes relativas à violência de gênero contra as mulheres, in verbis:

Nos termos da Convenção e do Direito Internacional, um Estado-Parte é responsável pelos atos e pelas omissões dos seus órgãos e agentes que consistam em violência de gênero contra as mulheres, incluindo os atos ou as omissões de funcionários no Poder Executivo, no Legislativo e no Judiciário. O artigo 2, “d”, da Convenção proíbe que os Estados-Partes, assim como seus órgãos e agentes, se envolvam em qualquer ato ou prática de discriminação direta ou indireta contra as mulheres e assegura que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com essa obrigação. Além de garantir que as leis, as políticas, os programas e os procedimentos não discriminem as mulheres, de acordo com o artigo 2, “c” e “g”, os Estados Partes devem ter um quadro legal e de serviços jurídicos eficaz e acessível para enfrentar todas as formas de violência de gênero contra as mulheres cometidas por agentes do Estado, tanto em seu território como extraterritorialmente.(…)

Dessa forma, salienta-se a necessidade de um controle de convencionalidade no âmbito legislativo, uma vez que suas leis devem estar em conformidade com todos os documentos internacionais assinados e ratificados pelo país, sob pena de responsabilidade internacional.

Por meio desse mecanismo deverá ser feita uma compatibilização da produção normativa doméstica com os Tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Governo e em vigor no país.

Nesse contexto, não há um dispositivo legal que exclua do âmbito de incidência a reivindicação da posse ou da propriedade em comum enquanto subsistir a medida protetiva de afastamento do lar. Logo, existe, ainda, a possibilidade de ampliação da interpretação do texto legal e a consequente supressão da eficácia das medidas protetivas deferidas.

Por esta razão, ocorre a violação ao princípio da vedação ao retrocesso, o qual alega que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios.3

É preciso que exista um projeto de lei que de forma cristalina delimite em quais casos não será aplicado os institutos reivindicatórios quando do deferimento das medidas protetivas, sobretudo, nos casos de afastamento do agressor do lar.

Em que pese o direito à propriedade e a posse do agressor, durante a vigência das medidas protetivas deferidas se faz necessária a mitigação dos efeitos legais dos dispositivos supracitados quanto à postulação destes direitos, pois subsiste o contexto de violência doméstica e familiar em que diariamente inúmeras mulheres são vítimas de agressões físicas e verbais, estando constantemente em risco de vida.

O que se retrata, na verdade, nada mais é, do que uma etapa anterior a ocorrência do feminicídio, a qual demanda uma atenção especial por parte do Estado na proteção dessa mulher, posto que o deferimento da medida protetiva tem justamente a finalidade de evitar o resultado mais gravoso.

Destarte, enquanto subsistir a vulnerabilidade da vítima e o seu amparo por meio de medidas protetivas, ainda que legítimos os direitos do agressor, os pedidos reivindicatórios de posse e propriedade devem ser analisados em momento posterior ao esgotamento da eficácia das medidas protetivas deferidas, a fim de se resguardar a dignidade da mulher, bem como o seu restabelecimento emocional.

A mulher vítima de violência doméstica e familiar necessita que o ordenamento jurídico pátrio a proteja de qualquer forma de violência e, para isso, o Poder Legislativo precisa preencher as lacunas existentes na Lei Maria da Penha, as quais permitem que o agressor continue a violentá-la mesmo após o deferimento das medidas protetivas.

Portanto, é preciso de atenção legislativa quanto aos institutos jurídicos que possam suprimir a eficácia da Lei Maria da Penha. Assim, o projeto de lei deve visar restringir os efeitos de determinadas previsões legais no âmbito cível enquanto vigentes as medidas protetivas deferidas à mulher.

Desta maneira, será ampliada a sua margem de proteção ad cautelam por meio de hipóteses taxativas de não incidência durante a eficácia das medidas protetivas.

Lei Maria da Penha na Íntegra e Comentada - Instituto Maria da Penha


1 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 8ª ed. p. 123/124. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

2 Idem.

3 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. p. 336. Coimbra: Almedina, 2002.


Bibliografia:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 8ª ed. p. 123/124. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. p. 336. Coimbra: Almedina, 2002.

Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

Lei nº 10.406/2002 (Código Civil).

Lei nº 13.105/2016 (Código de Processo Civil).

Lei nº 13.871/2019.

Decreto nº 4.377/2002 (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher).

Recomendação Geral nº 19 da Comissão CEDAW.

Recomendação Geral nº 35 da Comissão CEDAW.

Gabriela Moura de Oliveira é advogada.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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