Por Cid Benjamin –
Atualizado dia 26/5 às 15h52.
“Você precisa escrever sobre futebol. Está um lixo. Estupro, corrupção de jogadores, racismo sistêmico, mortes nos estádios. Se continuar assim, honestamente, é melhor suspender tudo”. Esta frase acima é de uma mensagem no WhatsApp que me foi enviada por um grande amigo, o repórter Chico Otávio.
Ele tem razão. Hoje, em todos os continentes da Terra, o futebol é muito mais do que um esporte. Atividade que apaixona muitos milhões (ou bilhões) de pessoas, movimenta uma quantidade gigantesca de dinheiro. Mas em torno a ele se acumulam problemas graves.
Há 50 anos, no início dos anos 70, antes mesmo de o mundo inteiro acompanhar as partidas dos principais times do planeta (mas já depois da Copa do México, a primeira a ser transmitida ao vivo em grande escala pela TV), estava eu no interior da Argélia, em pleno deserto, e tinha dificuldades para me comunicar minimamente com os moradores, que só falavam árabe. Lá pelas tantas, me ocorreu lembrar Pelé e um problema foi resolvido. Fui logo identificado como sendo brasileiro.
Já na citada Copa de 70, o uso da seleção de Pelé pela ditadura militar foi intenso. A propaganda oficial desenvolveu enorme esforço para identificar o time brasileiro com o regime. E, em algum nível, conseguiu, tal a força do futebol. Hoje, com a globalização e o crescimento das telecomunicações o impacto dele na vida das pessoas é muito maior.
E é maior para o bem e para o mal.
Por isso, a advertência do Chico Otávio é mais do que oportuna. É preciso tratarmos mais – e com mais seriedade – do futebol.
O dinheiro que rola é gigantesco. Os clubes movimentam milhões, dirigentes e empresários ganham fortunas de forma não muito transparente e os salários pagos são astronômicos.
Nesse quadro, é natural que esse mundo mexa com a cabeça de jovens de origem pobre que são alçados a celebridades milionárias. Claro que os que fazem sucesso são uma minoria, mas acabam representativos de um caminho de ascensão social com que sonha a maioria.
Figuras lamentáveis como Neymar tornam-se paradigma com seu sucesso, mas também servem de modelo com seu individualismo e egocentrismo. Estão dia e noite cercados de amigos (verdadeiros ou falsos) que vivem às suas custas e de namoradas (apelidadas, de forma preconceituosa, de “marias chuteiras”). Afinal, já disse o genial Nelson Rodrigues que “o dinheiro compra tudo, até amor sincero”.
Essa situação e esse estilo de vida sobem à cabeça de jogadores que passam a se achar donos do mundo e estão na raiz de casos de violência contra mulheres e até estupros. Afinal, naquele universo machista, como admitir que uma moça não se disponha a transar com eles? Fora os menos conhecidos, estão aí na mídia os casos de Cuca, Robinho e Daniel Alves, que só agora têm recebido o merecido repúdio da sociedade.
A Liga da Grã-Gretanha, hoje a mais forte e prestigiada do mundo, há alguns anos estava à beira do abismo, dentro e fora do campo. Foi obrigada a tomar medidas drásticas para reconduzir o futebol e tudo que o cerca a um patamar mínimo de civilidade.
A bola da vez agora parece ser a Espanha, com sucessivos casos de racismo, tratados com benevolência pela federação e pelos clubes. Seu presidente, Javier Tebas, é apoiador do Vox, partido de extrema-direita, e admirador do falecido ditador fascista Francisco Franco, informou ontem o mestre Juca Kfouri em sua coluna.
E, aqui, é preciso separar duas coisas. Uma coisa é a manifestação isolada de um idiota. Nesse caso, o racista deve ser identificado e punido. Mas é diferente quando um estádio em peso grita “macaco” para humilhar e desestabilizar um jogador adversário, como foi feito semana passada com o jovem Vinícius Júnior. Aí, é preciso punir o time da casa, interromper a partida, considerando perdedor o time dos racistas, e interditar seu estádio por determinado tempo.
Até porque, nesses casos, não estamos diante apenas de um desvio grave, mas individual. É própria do nazifascismo a imbecilização agressiva de multidões. Isso é muito perigoso e o resultado é conhecido de todos.
Outro risco são as apostas. Em torno a elas floresce a corrupção de clubes, jogadores e árbitros. As experiências – inclusive internacionais – estão aí para quem quiser ver. E elas estão crescendo enormemente no Brasil. As empresas de apostas hoje já patrocinam os principais times e, até, competições nacionais.
Todos reconhecem que as apostas são um foco de corrupção, mesmo seus defensores. Alguns afirmam que não há como coibi-las porque – tal como as “big techs” – estão sediadas fora do País. O cidadão aposta num jogo do campeonato brasileiro, mas as empresas estão sediadas não-sei-onde.
De qualquer forma, assim como no caso das “big techs”, me recuso a admitir que seja um problema insolúvel. E, assim como no caso das “big techs”, é preciso enfrentá-lo.
Apelo ao amigo Wadih Damous, que no Ministério da Justiça é responsável pela área da defesa do consumidor, e é um competente advogado, para que busque uma solução. E pergunto: não seria possível coibir a propaganda desses sites de apostas no Brasil? Em caso positivo, eles se esvaziariam.
Buscar uma solução para esse problema e resolvê-lo o quando antes é muito importante, por tudo o que o futebol representa na sociedade.
Afinal, já disse Eduardo Galeano, escritor uruguaio, autor do clássico “Veias abertas da América Latina”: de todas as coisas desimportantes, o futebol é a mais importante.
Estou de acordo com ele.
PS – Depois de redigido e distribuído este artigo, o amigo Juca Kfouri me alertou que a frase atribuída aqui a Eduardo Galeano teria sido dita por Arrigo Sachi, ex-treinador da seleção italiana. Reconheço Juca como uma autoridade maior em matéria de futebol. Embora eu me lembre de, em algum momento e em algum lugar, ter lido nas redes sociais que Galeano disse a frase, Juca deve ter razão. Fica aqui, então, essa ressalva.
Sacchi deve ter sido mesmo o primeiro a dizer isso.
CID BENJAMIN foi líder estudantil nos movimentos de 1968, participou da resistência armada à ditadura e foi dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Libertado em troca do embaixador alemão, sequestrado pela guerrilha, passou quase dez anos no exílio. De volta ao Brasil em 1979, foi fundador e dirigente do PT e, depois, participou da criação do PSOL. É jornalista, professor e autor dos livros “Hélio Luz, um xerife de esquerda” (Relume Dumará, 1998), “Gracias a la vida” (José Olympio, 2014) e “Reflexões rebeldes” (José Olympio, 2016). Organizou, ainda, a coletânea “Meio século de 68 – Barricadas, história e política” (Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.
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