Por Eliara Santana –
Na madrugada do dia 31 de agosto de 2016, eu estava recolhidinha na minha cama, tentando criar uma bolha de silêncio para não ouvir nem ver nada.
Estava se encerrando o julgamento do golpe embrulhado como impeachment. O golpe que tirava a presidenta Dilma Rousseff do Planalto, um impeachment sem crime de responsabilidade.
Quando acabou o julgamento, e o Senado deu o resultado “61 votos a favor do impeachment, 20 contra”, ouvi fogos e gritaria e tive a certeza de que, naquele momento, estava morrendo um projeto bonito de país. O golpe estava consolidado.
Chorei quieta, com raiva dos fogos e com muita apreensão pelo que viria. Afinal, os grupos de poder que não queriam um Brasil mais justo, menos desigual, mais plural, mais decente e mais feliz tinham vencido a disputa.
Por baixo da porta, meu filho empurrou um cartaz que ele tinha feito com a frase “A VIDA QUER DA GENTE É CORAGEM”, um trecho do Grande Sertão de Guimarães que eu amo.
Peguei o cartaz e, ao ler a frase e um “eu te amo, vc é guerreira”, chorei mais ainda. Eu estava muito triste, profundamente triste e angustiada com aquele golpe na nossa esperança de fazer um país mais decente.
E estava com medo do futuro, muito medo, pois imaginava um cenário muito ruim. Mas nem de longe era capaz de imaginar o que de fato viria.
Na sequência do golpe, esses grupos alimentaram a Lava Jato para buscar a prisão de Lula e apoiaram a farsa perigosa da eleição de Jair Bolsonaro. E em todos esses momentos, a mídia corporativa esteve bastante atuante, criando cenários e narrativas de apoio ao golpe, de demonização de Lula e de humanização de Bolsonaro, quando foi conveniente.
Tudo foi ficando muito ruim, muito degradado. Mas eles continuavam a dizer que era só tirar Dilma e o PT que tudo ia melhorar
E agora, cinco anos depois do golpe, vivemos um cenário de caos e crise generalizada. Não há governo.
O Brasil é “governado” de um cercadinho por um ogro que está aberta e deliberadamente confrontando ostensivamente as instituições democráticas. Um ogro que deveria ter sido interditado quando fez apologia da tortura e defendeu torturador em plena Câmara.
Há crise política, crise econômica, crise hídrica, crise ambiental, crise social, crise sanitária…. todas ao mesmo tempo agora. E não há governo, repito.
O país que orgulhosamente saiu do Mapa da Fome da ONU ao aplicar políticas públicas decentes e tirar da miséria milhões de brasileiros agora vê pessoas famintas nas ruas, pessoas desalentadas porque tudo falta e não há esperança de mudança.
O país que era consultado por organismos internacionais em relação ao meio ambiente agora vê a floresta sendo destruída, os povos indígenas sendo ameaçados e perseguidos pelo garimpo ilegal, vê o Pantanal pegar fogo, vê ministro do meio ambiente mandando “passar a boiada”.
O país que já foi a sexta economia do mundo assiste à fuga de investimento estrangeiro e vê a volta da inflação sem controle.
O país que celebrou a mais baixa taxa de desemprego em 2014 assiste à degradação do mundo do trabalho, com um desemprego de 15% e sem controle, com milhões de desalentados que nem ocupação procuram mais, porque, se a economia não reage, não há trabalho.
O país que foi referência de cobertura vacinal no mundo e que foi capaz de vacinar milhões de brasileiros em três meses, durante a epidemia de H1N1, foi açodado pela pandemia de Covid-19 sem qualquer ação governamental, sem um plano específico de controle e sem medidas de prevenção, com o governo federal fazendo propaganda de cloroquina e ivermectina, remédios sem qualquer eficácia no combate à doença, e brigando com os governadores que adotaram medidas de isolamento social.
O país que discutia uma nova matriz energética, com experiências exitosas em energia eólica e solar, vive agora uma crise hídrica e energética sem precedentes, à beira do apagão, que virá com certeza.
O país que viu os aeroportos lotados com famílias que nunca tinham tido a chance de viajar de avião agora amarga o alarmante índice de 7 em cada 10 famílias estarem endividadas, 7 em cada 10 famílias chegam ao fim do mês sem dinheiro e com dívidas, fazendo as compras de supermercado penduradas no cartão de crédito, que cobra juros de 300% ao ano.
Cinco anos depois do golpe, o Brasil não tem plano de governo, não tem política econômica, não tem políticas públicas, não tem investimento para a educação, não tem investimento em saúde.
Cinco anos depois, o Brasil elegeu um insano e não tem nada, a não ser o caos.
E agora, o ogro que ajudaram a subir a rampa do Planalto está esticando totalmente a corda, fazendo troça com as instituições democráticas, zombando dos ministros do STF, colocando em dúvida a legitimidade do voto eletrônico, flexibilizando porte de arma, brigando com os governadores durante a pandemia, flertando com a milícia, afundando ainda mais a economia.
Para isso deram o golpe? Para levar ao poder um insano? Para destruir tudo o que foi construído? Queriam alijar do poder as forças progressistas e acabaram destruindo o país inteiro.
Agora que a situação se mostra mais e mais difícil e sem solução à vista, todos estão desembarcando da irresponsável aventura.
O último a sair foi o mercado financeiro, aquele que aplaudia e incentivava os patos amarelos. A comoção não veio por causa dos milhares de mortos com a pandemia sem controle no país, mas pelo terror da crise energética e da fuga de investimento estrangeiro.
Ou seja, o deus mercado está perdendo dinheiro. O Brasil, agora eles já sabem, está no buraco, e tudo pode piorar, pois o ogro que apoiaram é incontrolável e não se dobra a acordos.
Enfim, nem podemos dizer “bem feito”, porque a situação é muito grave, e todos nós perdemos demais com o golpe.
O mar da história é agitado, como disse Dilma ao se despedir do Planalto em 2016. E assim foi nestes cinco anos.
Mas somos corajosos, resilientes e ainda guardamos um tiquinho de esperança.
A disputa que se coloca para 2022 será intensa, não há dúvida. Mas do lado de cá, nós, os golpeados de outrora não vamos abrir mão de fazer deste Brasil tão plural e rico um país decente de verdade para todos.
Afinal, a vida quer da gente é coragem.
Fonte: Viomundo
Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística pela PUC/MG
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