Por Andre Pires de Andrade Kehdi

No dia 26 de abril deste ano, o ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, escreveu brilhante artigo intitulado “A ADPF 635 e a transmutação das práticas autoritárias” sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal na chamada ADPF das Favelas, que tratou do tema da violência policial e estabeleceu requisitos para as operações a fim de reduzir a sua letalidade. No texto, chamou, com razão, a decisão de “a mais importante da história do Supremo Tribunal Federal para a preservação dos direitos humanos” e afirmou que “ao Poder Judiciário está reservado um papel decisivo na mudança de cultura das agências estatais que compõem o sistema de Justiça criminal”. Teceu, ainda, considerações sobre os abusos cotidianos das forças policiais nas periferias, especialmente com os assassinatos e as famigeradas violações de domicílio sem mandado, sem consentimento do morador e sem justa causa, que atingem seletivamente determinados locais (periferia), grupos sociais (classe D) e pessoas (negras).

É impossível discordar de sua opinião: não precisaríamos nem dos tratados internacionais, nem da Constituição Federal, nem da legislação ordinária para concluir que as atrocidades ali praticadas pelas forças de segurança pública mereceriam outro tipo de resposta de todos os atores do sistema de Justiça.

Não há como exigir do Poder Judiciário, todavia, o exercício desse papel fundamental de controle da atividade policial se os poucos juízes que ousam fazê-lo são punidos por isso pelos seus órgãos disciplinares, em clara afronta à sua independência funcional, principalmente no Tribunal de Justiça de São Paulo, que é pródigo em exemplos desse tipo de censura nos últimos anos.

O primeiro deles, ocorrido em 2016, foi a punição à desembargadora Kenarik Boujikian, então juíza substituta em segundo grau na 7ª Câmara Criminal do TJ-SP, sob o fundamento de que teria violado o princípio da colegialidade e agido com falta de cautela ao conceder monocraticamente liberdade a pessoas que estavam presas provisoriamente para além do tempo de pena fixado na sentença de primeiro grau [1]. No julgamento no CNJ, que reverteu de forma contundente a punição, o conselheiro João Otávio Noronha, ministro do STJ, afirmou que “o TJ-SP agiu mal. Não agiu bem. E por que não agiu bem? Porque ele arruma uma desculpa estapafúrdia para censurar ao fundo e ao cabo a decisão meritória da juíza. O conselheiro Gustavo Alkmin, por sua vez, asseverou: “Punir o magistrado por sua compreensão jurídica é maior violência à sua liberdade e à sua independência” (Revisão Disciplinar 0002474-75.2017.2.00.0000, j. 29/8/2017).

O segundo deles ocorreu em 2018, quando o TJ-SP, mesmo pouco tempo depois da decisão do CNJ acima mencionada, aplicou pena de censura ao juiz Roberto Luiz Corcioli Filho sob o fundamento de que ele julgava “movido por razões de ordem ideológica, curiosamente vinculadas à ideia de garantismo — condenação esta que em fevereiro deste ano de 2021 também foi revertida no CNJ. Na votação, chegou-se a afirmar que o TJ-SP é um tribunal que se recusa a aplicar a lei e os precedentes dos tribunais superiores, de modo que, caso fosse mantida aquela punição, por coerência também deveriam ser instaurados processos disciplinares contra todos os desembargadores da corte (RD 0004729-35.2019.2.00.0000, j. 23/2/2021).

Vale lembrar, ademais, que, mesmo antes da punição disciplinar efetiva, desde meados de 2013 o juiz Roberto Corcioli havia sido proibido, sem qualquer respaldo em lei, de atuar em varas criminais pelo então corregedor do TJ-SP, José Renato Nalini, a pedido de promotores de Justiça que reclamaram que o magistrado “soltava muito e prendia pouco”.

Recentemente, menos de dois meses depois da decisão do CNJ absolvendo Roberto Corcioli, mais uma vez o TJ-SP instaurou processo disciplinar contra magistrado em razão do conteúdo jurisdicional de sua decisão, considerada “ideológica” pelo órgão especial daquela corte, que o acusou de “ter preconceito contra a polícia” (Procedimento Administrativo Disciplinar 107.362/2020). O alvo da vez foi juiz que no final de 2020 relaxou flagrante de tráfico de drogas por entender ausente a fundada suspeita para busca pessoal, conforme exigem o artigo 244 do CPP, a jurisprudência dos tribunais superiores [2] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso Fernandez Prieto vs Argentina). É simbólico e chama a atenção, ainda, que a representação disciplinar tenha sido feita por três parlamentares oriundos da Polícia Militar.

Além disso, um dos desembargadores que, ao votar pela abertura do processo disciplinar, chamaram de teratológica a decisão do magistrado é professor de Direito Processual Penal da Academia da Polícia Militar do Barro Branco há mais de 30 anos e ganhou notoriedade por decretar de ofício a prisão preventiva de um indivíduo posto em liberdade provisória com fiança em primeiro grau e impetrou Habeas Corpus pedindo a revogação da garantia por falta de condições financeiras. Ao analisar o writ, o desembargador revogou a fiança, mas decretou a prisão preventiva de ofício (!), em decisão (essa, sim, teratológica) sem absolutamente nenhum amparo no ordenamento jurídico. Nesse caso, entretanto, não houve qualquer consequência disciplinar, a indicar que o respeito à independência funcional e o conceito de teratologia parecem ser seletivos na corte bandeirante.

Muito embora à primeira vista possam parecer casos excepcionais e isolados num universo de mais de dois mil juízes, não é difícil imaginar que são mais do que suficientes para servir de exemplo e intimidar não apenas os próprios magistrados processados — que, mesmo depois de corretamente absolvidos pelo CNJ, provavelmente não terão interesse em correr o risco de enfrentar as agruras de um longo processo disciplinar —, mas também todos os demais que cogitem trilhar caminho semelhante, o que acaba por moldar, pela via do medo, a sua forma de decidir (conhecido como chilling effect).

Mas não é só pela via disciplinar que o punitivismo é exaltado e o garantismo, censurado no TJ-SP. Há diversas outras práticas que, de forma menos ostensiva, (de)formam os magistrados paulistas. Uma delas é a corriqueira agressividade com que decisões absolutórias ou concessivas de liberdade são reformadas pelas Câmaras Criminais do tribunal, uma maneira de coagir indiretamente os juízes de primeiro grau [3].

Em outros casos de relaxamento de prisão considerada ilegal, as decisões sequer são submetidas ao duplo grau de jurisdição, como determinam a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica, pois outros magistrados de primeiro grau se sentem à vontade para reformar decisões de colegas que atuaram em plantão, sem fatos novos e invariavelmente para impor prisões preventivas [4].

Outra maneira de exaltar o punitivismo e, por via oblíqua, desestimular o garantismo, é pelo portal de notícias do site do TJ-SP. Uma breve consulta mostra que diariamente divulgam-se condenações criminais de primeiro ou segundo grau. As absolvições, por outro lado, são bastante raras.

buscador do site retorna 1.494 resultados de condenação (termo “condena”), ao passo que apenas 70 de absolvição (termo “absolve”). Salta aos olhos que, para cada cem condenações, noticiem-se apenas cinco absolvições.

Desde o início de 2016, houve apenas nove notícias de absolvição (termos “absolve”, “absolveu”, “absolvição”), em contraposição a 168 condenações noticiadas no mesmo período (termo “condena”). Daquelas nove improcedências de ações penais, curiosamente, sete tratavam de policiais militares acusados de homicídios e chacinas [5].

Realizada pesquisa manual de cada uma das 517 notícias publicadas pelo TJ-SP em 2021 (até 8/5), constata-se que foram divulgadas 57 condenações criminais.

Por outro lado, publicou-se no portal apenas uma única notícia relativa a absolvição. Adivinham do quê? Acertaram! Ex-policial militar e guarda civil absolvidos da acusação de participação em chacina.

Se algo pode ser mais explícito, é a situação do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais), onde são feitas todas as audiências de custódia da capital e os cargos são preenchidos por indicação, não por concurso. O juiz corregedor desse departamento é indicado pessoalmente pelo corregedor-geral de Justiça e tem o poder de escolher todos os demais magistrados do órgão, o que, além de violar o princípio do juiz natural, permite selecionar a dedo quem definirá a liberdade ou a prisão em todos os flagrantes da maior cidade do país. Essas escolhas, desde a última alteração na gestão, implicaram no aumento de 52% para 73% do índice de conversões em prisão preventiva.

Também são escolhidos pela cúpula do TJ-SP, e não por concurso, os juízes dos Departamentos Estaduais de Execuções Criminais (Deecrims), responsáveis por todas as execuções de penas em regime fechado e semiaberto no estado de São Paulo [6]. Esse funcionamento absolutamente írrito ao princípio do juiz natural foi levado ao STF pela Procuradoria-Geral da República na ADI nº 5070, proposta no longínquo ano de 2013. Embora a decisão a ser ali tomada tenha consequências importantíssimas para as centenas de milhares de pessoas privadas de liberdade no estado que mais encarcera no país, o pedido de inclusão na pauta de julgamento, feito pelo relator em setembro de 2018, continua sem ser atendido pelos sucessivos presidentes da corte até o momento.

O resultado da política institucional paulista fala por si só: a absolvição por nulidade de provas produzidas pelas polícias e o relaxamento de prisões em flagrante pela ilegalidade da atuação destas são acontecimentos quase bissextos no TJ-SP, e as raríssimas e honrosas exceções que aparecem somente confirmam a regra [7].

Uma rápida busca no Diário de Justiça Eletrônico no mês de março de 2021 apresenta apenas 11 decisões publicadas com o termo “relaxo”, não obstante a estatística oficial da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo registrar a prisão em flagrante de 9.550 pessoas no mesmo período. Esses dados se repetem com pouca variação em qualquer mês que se pesquise (janeiro: quatro relaxamentos x 9.050 prisões; fevereiro: dez x 9.108…).

O contexto acima apresentado mostra, parafraseando Darcy Ribeiro, que o descontrole da atividade policial, o desrespeito às garantias fundamentais e o encarceramento em massa, ao menos em São Paulo, parecem não ser uma crise, mas, sim, um projeto. E um projeto que continuará tendo “sucesso” enquanto não for assegurada a efetiva independência funcional da magistratura, particularmente frente às próprias cúpulas dos tribunais. Afinal, não há como exigir que o Judiciário controle os abusos policiais se os seus próprios órgãos disciplinares continuarem intimidando os juízes que tentam fazê-lo.

Como bem alerta Zaffaroni, pouco importa o que as constituições e o direito internacional dos direitos humanos disponham, se os juízes não podem aplicar suas disposições, sob pena de serem denunciados e perseguidos pela pressão dos meios de comunicação, pelos corpos colegiados das próprias estruturas judiciais, pelos políticos que aproveitam para eliminar os magistrados incômodos, para fazer publicidade ou, simplesmente, por seus próprios colegas empenhados em desprestigiar um possível competidor em uma promoção ou em intrigas palacianas (“O inimigo no direito penal”. 2ª ed. Rio de janeiro: ICC/Revan, 2007, p 80-81)

O ministro Schietti tem total razão em seu artigo. Mas de nada servem os tratados internacionais, a Constituição Federal, a lei, a doutrina de vanguarda, os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos ou dos tribunais superiores se os juízes tiverem medo de segui-los. E em São Paulo eles têm sérias razões para temer. Infelizmente.

***

[1] Poucos dias antes do julgamento do caso pelo Órgão Especial, escrevi um artigo sobre o tema. O título já diz muito: Tribunal de Justiça de SP tem histórico de perseguições a magistrados que divergem da maioria.

[2] No STJ, entre outros: AgRg no HC 530.167/SP, Rel. LAURITA VAZ, 6ª T., DJe 11/03/2021 e HC 625.819/SC, Rel. NEFI CORDEIRO, 6ª T., DJe 26/02/2021.

[3] Veja-se aqui, por exemplo, o caso do magistrado que relaxou prisão em flagrante em razão de violação de domicílio sem mandado, sem consentimento válido do morador e sem justa causa e teve sua decisão adjetivada de “esdrúxula e estrábica” pelo desembargador que a reformou, o qual também acusou o juiz de primeira instância de interpretar a Constituição Federal de maneira “desnorteada” de forma a transformar a casa em “valhacouto” de crimes. O caráter intimidatório e dissuasório da decisão de segunda instância fica evidente, especialmente considerando que a decisão do magistrado de primeiro grau encontra amplo respaldo na jurisprudência do STJ (na 6ª Turma, o leading case brilhantemente relatado pelo minº Schietti – HC 598.051/SP, DJe 15/03/2021; na 5ª Turma, o HC 616.584/RS, Rel. RIBEIRO DANTAS, DJe 06/04/2021, entre outros).

[4] Exemplo dessa reprovável praxe aqui.

[5] Leia sobre a absolvição de PM de 2021, a de 2019, as quatro de 2018 (123 e 4) e a de 2016.

[6] Critiquei essa aberração em artigo escrito à época, também na ConJur.

[7] Pesquisem termos chave como “nulidade”, “polícia”, “prova ilícita”, “preliminar de nulidade”, “preliminar”, “busca pessoal”, “busca domiciliar”, “nula”, “nulo”, “invasão de domicílio”, “violação de domicílio” etc. e vejam o resultado.

(Fonte: ConJur)

Andre Pires de Andrade Kehdi é advogado criminalista, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e sócio do escritório Andre Kehdi e Renato Vieira Advogados.

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