Por Lincoln Penna

O primeiro que, tendo cercado um terreno, tratou de dizer, isso é meu e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o fundador da sociedade civil. (Rousseau, “Discurso sobre a desigualdade entre os homens)

Deus quase se arrepende de ter feito a humanidade. Viu que tudo era injustiça, aflições e vaidade. O homem, por mais fiel, inda se julga cruel à suprema Majestade. (“Lampião, O Rei do Cangaço” de Antônio Teodoro dos Santos. O Poeta garimpeiro, folheto, São Paulo, 1959. Transcrito por Eric Hobsbawm em seu livro Bandidos).

A questão da bandidagem tem ganho muito destaque no noticiário, muito embora este se limite por conveniência a retratar somente os seus efeitos, jamais ou raríssimamente as suas origens. As epígrafes acima nos levam a crer que existem razões que explicam a incidência cada vez mais intensa da violência, cuja caráter procuramos refletir num dos ensaios anteriores.

Estava relendo o livro do historiador Eric Hobsbawm, “Bandidos”, quando encontrei similitudes com uma obra que fora publicada há 60 anos intitulado “As Classes Perigosas. Banditismo urbano e rural”, de Alberto Passos Guimaraes, pela Editora Fulgor e reeditado oportunamente em 2008 pela Editora da UFRJ.

O mesmo autor também de “Quatro Séculos de latifúndio”, que me deixara mais bem informado de nossa formação histórica e da resistência de estruturas que têm emperrado o verdadeiro progresso do país. Tanto esta quanto a relativa aos problemas decorrentes da presença do latifúndio, entre outros fatores, acrescentam um elo à compreensão de nossa permanente incapacidade de prover as necessidades do povo brasileiro. São trabalhos de referência e assim continuam para os estudos da realidade brasileira. Tão atuais que merecem algumas referências e ilações com os tempos em que vivemos, sobretudo diante do crescente submundo que assola as comunidades.

Por sinal, Hobsbawm no capítulo do livro Bandidos, ao se referir à relação entre bandidos e a revolução trata dessa questão ao definir o banditismo social como tendo afinidades com a revolução social. Ambos os fenômenos são formas extralegais de protestos, de insurgências contra a legalidade calcada nos interesses das classes dominantes, que as emprega para não só discriminá-los como reprimi-los. Acrescenta que a noção de submundo representa a negação da ideia de sociedade, tal como sustentada pelos poderosos de ocasião.

No Brasil, país da conciliação, artifício encontrado para absorver as contradições inerentes de uma sociedade historicamente desigual e, com isso, acomodar demandas em troca de pequenas e insuficientes compensações, preservou o seu passado colonial e semicolonial de modo a agravar terrivelmente a situação do povo. A este, não tem restado senão as alternativas mais divergentes em relação aos donos do poder. Dentre elas a ultrapassagem dos limites da legalidade, resultando daí o surgimento do termo que dá título a obra de Alberto Passos Guimaraes, as classes perigosas. Termo preciso para definir o significado desse contingente social para os donos do poder.

Essa situação decorreu de modificações do comportamento no mundo do trabalho em função do incremento da pauperização ocasionada por fatores que vão desde a passagem da industrialização massiva para o emprego de mecanismos tecnológicos a reduzir os postos de trabalho, até o advento do estágio alcançado pelo capitalismo financeiro a desbancar o dos capitães de indústria. Assim, de reservas de força de trabalho entregues ao desemprego crônico e à miserabilidade surgem as classes perigosas. Estas hoje em dia infestam a cronicidade do capitalismo senil, em face de seu momento histórico agônico e com perspectivas pouco alvissareiras.

À memória de Alberto Passos Guimarães | NPC

Como nos lembra Alberto Passos Guimaraes (foto acima), “a expressão classes perigosas (dangerous classes), no sentido de um conjunto social formado à margem da sociedade civil, surgiu na primeira metade do século XIX, num período em que a superprodução relativa ou o exército industrial da reserva, segundo a acepção de Marx, atingia proporções extremas na Inglaterra, quando esse país vivia a fase “juvenil” da Revolução Industrial”. Este diagnóstico pode ser aplicado ao Brasil, a despeito das condições históricas não terem similaridades, Haja vista a diferença entre uma nação a operar o primeiro grande surto imperialista no mundo e a outra a ele submetido.

Na sociedade brasileira, cujo desenvolvimento tardio do capitalismo, sobretudo no que se refere a sua internalização no campo das relações capitalistas de produção, dada a prevalência da hegemonia do latifúndio a impedir o desenvolvimento das relações capitalistas, as formas de rebeldia se multiplicaram. Dentre elas, na região nordeste do país, sem dúvida, o cangaço alcançou o limiar de um processo potencialmente revolucionário, a despeito de ter sido usado essa potencialidade para frear projetos derivados de ações organizadas, como a do Tenentismo, por exemplo.

Assim, o cangaceiro é um ser disposto a sobreviver mesmo que para tal tenha de pegar em armas e reunir-se com tantos outros para a defesa de territórios ou manifestar de alguma forma o descontentamento de seus integrantes. Como bandos minimamente organizados carecem, no entanto, de objetivos voltados para alcançar o poder, senão o de se manterem livres da sanha dos “macacos”, como eram por eles chamados os policiais a mando das autoridades representativas do coronelismo local.

O fato é que essa mistura entre um submundo marcado pela presença de um contingente social entregue à própria sorte e por isso mesmo disposto a recorrer a formas de resistência e luta para sobreviver, nesse contexto, uma parceria até então inusitada torna-se possível pór em prática com as classes operárias dispostas a transformar suas reivindicações em projetos mais audaciosos de tomada do poder.

É a possibilidade de junção dessas insurgências que acaba por transformar o estado burguês em estado policialesco, quando não ao empregar sua forma mais assumidamente repressora porque escalando o degrau do totalitarismo, como é o caso da alternativa fascista. Este regime que ao ser adotado representa a barreira julgada intransponível pelos grandes detentores do poder burguês.

Além do campo e das periferias dos grandes centros, hoje em dia já convivem nas principais regiões outras modalidades de criminalidades. As milícias a disputarem territórios estratégicos do narcotráfico, nos bairros das cidades brasileiras. Trata-se de uma verdadeira guerra civil. Seja no sentido das soluções mais violentas por parte do estado, e é o que acontece especialmente no Rio de Janeiro, ou na perspectiva de grandes confrontos levando-as às portas de insurreições de grande porte.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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