Por Ricardo Cravo Albin –
“Nossos atletas chegaram ao Olimpo mais por esforço próprio que por apoio do país que os festeja.”
Pretendia abordar hoje as alegrias que chegaram com as medalhas das Olimpíadas e a tristeza do incêndio da Cinemateca, enquanto relia o artigo inspirador “Madrugadas” de Dorrit Harazin no Globo de ontem, em que ela cunhou a bela frase “nesta semana fomos felizes enquanto dormíamos ou sonambulávamos. Duro foi acordar para a rotina indigesta onde se matam fatos e a verdade, além de saber da tragédia da Cinemateca”.
A temperatura política, contudo, subiu muito com a abertura horas atrás do segundo semestre dos STF e STJ. O presidente Luiz Fux insistiu no apoio à democracia em relação às Instituições e o ministro Barroso do Superior Tribunal Eleitoral fez votar por unanimidade a investigação de Bolsonaro pelas perorações contra a urna eletrônica. Por que tal insistência? todos os juízes se perguntam e insistem também na análise das fake news. Ambos os ministros com um tom acima do habitual, em cobrança ao presidente.
Voltando ao começo, a tragédia da Cinemateca ocorreu pelo abandono e desprezo por sua conservação. O incêndio de fato foi temido por todos nós desde que, ao defenestrar Regina Duarte da Cultura, o presidente lhe teria assegurado uma das joias culturais do país, a Cinemateca. Uma dupla perfídia, tanto que a atriz foi ludibriada pela segunda vez. Repito aqui que, quando soube que Regina não mais assumiria, pairou pesado silêncio sobre os cuidados devidos à toneladas de documentos e filmes. O governo estava a anunciar uma futura tragédia. Tanto temi pelo desastre, macaco velho que sou, que telefonei a amigo paulistano museólogo rogando-lhe que fosse conferir como estavam as centenas de pastas dos documentos da Embrafilme e do INC- Instituto Nacional de Cinema. Já explico: dirigi por quase dois anos ambos os órgãos e arquivei no INC todos os preciosos relatórios feitos pessoalmente por um dos personagens mais importantes da cultura deste país, o cineasta Humberto Mauro. Havia ademais encomendado ao pioneiro do cinema educativo uma nova série de roteiros para Diafilmes, destinados às escolas primárias e secundárias.
Um trabalho de gênio de que Mauro se desempenhou com orgulho, assegurando-me ter sido a chave de ouro para encerrar sua carreira no audiovisual.
Além disso coube-me preservar em arquivos importantíssimos na Embrafilme a consolidação de uma indústria cinematográfica do país, desenhada por equipe escolhida por Luiz Carlos Barreto e por mim, com os economistas Jacques Deheinzelin e Noemio Espíndola, além dos cineastas David Neves e Leon Hirsman. Que geraram as portarias que abririam o mercado exibidor para os filmes brasileiros, passando de 56 dias obrigatórios para a exibição deles nas cadeias de cinema ao longo de 64 dias, logo depois 85, e finalmente 112 dias para reserva do produto brasileiro, em que se estimulavam coproduções com outros países e cadeias de tevê.
Poucos sabem, mas registrei em pastas da Embrafilme toda a luta subterrânea da Motion Pictures contra nossas sucessivas portarias, o que fez o presidente da indústria americana, um sujeito de maus bofes chamado Jack Valenti, ir a Brasília só para acusar o cinema brasileiro de inimigo dos Estados Unidos, comunistas em ânsias para prejudicar Hollywood. Vejam só…
A resposta que recebi de meu enviado à Cinemateca foi desoladora, muitas das pastas já haviam sofrido danos por conta de telhados quebrados e enchentes provocados por simples abandono.
Tentei intervir para denunciar, mas jamais recebi qualquer resposta. O silêncio certamente teria sido um réquiem perfeito para atiçar as labaredas que destruíram à memória do cinema brasileiro.
Mas enquanto as chamas ateavam o fogo da indignação a todos os que amamos o cinema do Brasil, sobe-me à cabeça um refrão de um velho divulgador de nossas coisas, as coisas nossas, o Adolfo Cruz, que exclamava em suplica de resistência ao preconceito contra o Brasil – “falem mal, mas falem do Cinema Nacional”.
Mas enquanto enxugávamos as lágrimas provocadas pela fumaça da tragédia de São Paulo, enxugamos lágrimas provocadas por sentimentos de orgulho de nossos atletas, que, esses sim, merecem solidariedade oposta a devotada à camarilha que destrói a memória.
Resumo nossos medalhistas em duas meninas, com toda razão os novos ídolos do Brasil, nossos quindins de graça, esforço e verdades, filhas de país sem mentiras. A fadinha Rayssa Leal, faiscante no skate street, até me parecia Aladin singrando o chão no tapete mágico de seu skate. Já Rebeca Andrade, nossa rainha de agora, juntou em 90 segundos de seu solo Bach com Baile de Favela de MC João e a batida do funk das periferias cariocas às Olimpíadas.
Rebeca ao se declarar fruto da perseverança, do sacrifício e da pobreza, decretou quase sussurrando recado supremo: que os jovens acordem. E não temam os esforços, os sacrifícios. O importante é lutar. E ter fé. Muita fé.
Obs: Já nas Livrarias da Travessa o livro da Editora Batel “Pandemia e Pandemônio” – Relatos indignados deste cronista, com recomendações de Nélida Piñon, Margareth Dalcolmo e Jerson Lima.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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