Por Ricardo Cravo Albin –
“O velho não morre de velhice/nem de acidente, nem de doença/mas, Oh Senhor, só de indiferença”, com esses versos premonitórios, invocando Deus, Cecília Meirelles cunha a devastadora atualidade de hoje, agora uma paráfrase para centena de milhões de velhos condenados à morte pelo coronavírus. Afinal, eles representam alto risco. A falta de equipamentos dos hospitais brasileiros, rolando ladeira abaixo pela péssima gestão dos politiqueiros de sempre, provocou o absurdo da indiferença e da falta de compaixão em relação aos velhos.
Fiquei tomado de pavor, dor e indignação quando ouvi e li médicos de hospitais lotados declararem, não clara mas sibilinamente, que estava por se aproximar o momento de se proceder a macabra seleção de quem mereceria viver em CTI repleto, o cidadão mais jovem ou o mais velho. Meu Deus.
Hoje eu pretendia escrever sobre o lado mais solar da tragédia que desabou no Brasil com mais força que o esperado. Refiro-me à solidariedade de boa parte de empresas privadas e, sobretudo dos indivíduos, em geral pobres que recolhem alimentos para minorar a fome dos desprotegidos. Isso ajuda a tornar mais tolerável a desolação atual que vivemos. Sociólogos e escritores apregoam em jornais internacionais que o planeta será outro depois desta peste ceifadora de vidas. Confesso que sou um tanto descrente dessa água fétida de agora transformar-se em vinho amanhã. De qualquer modo, o confinamento obrigatório para tantos, a desobediência para tantos outros (incluindo governos vitimados por cegueira bíblica), a miséria que baterá à porta da maioria dos países, tudo isso estimula uma tábua de salvação, representada pelo necessário consolo de acreditar, de crer em mudanças. Em resumo, de fé.
Não, não pude adentrar por esses possíveis raios de sol da solidariedade de agora, porque meu interior clama por retornar às tempestades por que passa e passará a nossa população acima de 60 anos, protegida, atenção atenção, pela Lei 10.741 /2003, o Estatuto do idoso. A mesma Lei que acarinha os idosos com benefícios de todas as ordens. O que estaria obviamente a indicar prioridade na disputa de leitos e CTIs na rede lotada dos hospitais. Em sua “Memoirs”, a filósofa francesa Simone de Beauvoir
chama a atenção de que “o mais escandaloso dos escândalos é quando nos habituamos a ele”. De fato, cabe a consciência viva da nação zelar por sua população de velhos e sequer admitir a tragicidade da Escolha de Sofia, aquela lenda da Grécia Antiga em que uma mãe, Sofia, tinha que salvar apenas um de seus dois filhos, aos quais queria igualmente.
Escritores e filósofos sempre concederam à velhice mesuras e distinções. Tal como as civilizações mais antigas, sobretudo a japonesa, ao venerar seus ancestrais com a máxima “o velho merece respeito e prioridade não pelos cabelos brancos e muitos anos vividos, mas pelos suores destilados pelo conhecimento e pelo acúmulo de sabedoria (cito o Rabino Yaacov Ben Shimon)”. Uma verdade que foi adaptada por Nelson Rodrigues com contundência, “eu acho que o jovem só pode ser levado a sério depois que lhe chegar a solidez da velhice”.
Apenas para insistir na sabedoria de filósofos a defender a velhice humana encerro com esta pérola de Goethe “O que a juventude deseja, a velhice o tem em abundância”.
Avalio, entre triste e indignado, que alguns médicos não terão a grandeza de definir sem titubear a quem salvar em uma emergência. Por isso, cabe-lhes a carapuça criada por Francois Chateaubriand há muito tempo. Hoje mais atual que nunca – “outrora a velhice era uma dignidade intocável, hoje é um peso”.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin, Colunista e Membro do conselho editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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