Por Lincoln Penna

O Marco Temporal é mais uma ameaça dos donos do poder.

Eles investem com o intuito de dar provimento as ambições desmedidas sobre as terras que foram confiscadas em sua imensa extensão aos índios, ou seja, aos povos tribais originários que habitavam o território que viria a ser batizado de Brasil pelos conquistadores movidos pela mesma ambição que se renova a cada geração.

Essa empreitada que trouxe os europeus, especialmente os ibéricos, para as costas do Atlântico encerrou um verdadeiro holocausto, termo que tem sido evitado por puro zelo colonialista impregnado em nossa cultura política. Os povos aqui encontrados foram tratados no mínimo como “incivilizados” pelos invasores. Essa população que vivia em comunidades, cuja terra é não apenas o meio de sobrevivência carrega, na verdade, o sentido de pertencimento de todos os que a integram. Eles foram, ao longo do período colonial português alijados de seus bens materiais e culturais.

Em abril de 1500, o território correspondente ao atual Brasil foi reivindicado por Portugal após a chegada da frota comandada pelo explorador português Pedro Álvares Cabral

Na República, nada mudou. Houve tão somente uma medida apresentada quando da realização da Constituinte da qual resultou a nossa primeira Constituição republicana, de iniciativa do Apostolado Positivista Brasileiro. Tratava-se de reconhecer os povos indígenas e a eles seriam reconhecidos seus territórios como estados autônomos, que seriam integrados ao estado brasileiro. Como se fosse um estado plurinacional.

O Brasil que se constituiu foi o das terras ocupadas por europeus que aqui chegaram durante a expansão mercantil. Essa ocupação resultante da invasão em território habitado por inúmeras comunidades tribais espalhadas desde o litoral esmagou as tradições culturais desses povos originários, com o fim de aculturá-los e transformá-los em seres cativos e submetidos ao comando da empresa mercantil, sob o manto da igreja católica.

Nessas comunidades seus habitantes viviam dos recursos da natureza sem que esta fosse objeto de uma ação predatória de suas riquezas naturais e minerais. A economia sob a forma de escambo decorria sem o emprego da violência da usurpação, mas pela via da cooperação e irmanada toda a sua gente de modo a prover a população que coabitava a vasta extensão de terras cobiçada até hoje pelos eternos grileiros.

A faixa costeira onde se encontra hoje em dia resíduos da Mata Atlântica concentrava grande parte dessas tribos vivendo em pequenas aglomerações nas quais se produziam as suas necessidades básicas. Cultivavam igualmente o hábito da fraternidade com toda a diversidade, tanto das aldeias mais ou menos próximas quanto do hábito do mutirão, desde que tais atitudes se impunham como indispensáveis para certas precisões que por vezes atingia seus vizinhos próximos.

Protesto durante os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas em 2015. (Marcelo Camargo/ Agência Brasil)

Não é, portanto, de se estranhar que por ocasião da chegada das embarcações invasoras de diversos agentes daquela empresa mercantil, fossem eles portugueses, espanhóis ou de outras procedências, todos recebidos como amigos a serem incorporados à nova terra assim que desembarcassem, pois esta era a cultura política da confraternização. Mas, o objetivo predatório desses agentes do mercado que se expandiram de modo a atingir outros continentes dispensavam as boas acolhidas. Para os mercadores o que desejavam era que esses povos originários os servissem para darem vazão à expropriação das riquezas que deslumbravam os invasores assim que se deram conta de sua existência.

Essa realidade pouco mudou, até que em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Primeiro, porém, ainda tímido anteparo à ação da grilagem de terras, a ocuparem as terras devolutas que avançavam sobre as aldeias indigenas. O SPI funcionou até o ano de 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que contou com a dedicada participação de muitos indigenistas a operarem no sentido de restabelecer seus costumes e preservar suas línguas e demais tradições afetadas pela ideia da aculturação de cunho colonialista, mesmo tendo sido uma iniciativa do primeiro governo ditatorial depois do golpe de 1964.

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Antes da mudança do organismo direcionado para orientar a chamada questão indígena, por parte dos militares, o marechal Cândido Rondon houve por bem agir, mercê seu prestígio, para a criação do Conselho Nacional de Proteção ao Índio, em 1939. Enquanto viveu, Rondon prestou como engenheiro militar valiosíssima contribuição para a defesa, preservação e autoestima dos povos originários. Até sua morte, em 1958, foi um bravo soldado na luta preservacionista contra as arremetidas que punham em risco à sobrevivência não apenas de indivíduos indígenas, mas de culturas tradicionais e civilizatórias dada a violência cometida e estimulada pela ganância de sempre.

Todavia, Rondon era um militar que se encontrava bem distante da lógica daqueles seus camaradas de farda que tomaram o poder e implantaram a lógica do falso lema “integrar sem entregar”, como se fosse uma tarefa de defesa pátria o avanço sobre as reservas indígenas. O lema de Rondon era outro, “morrer se preciso for matar nunca”. A ditadura implantada inverteu esse lema e o trouxe para justificar a barbárie contra os patriotas que se opuseram aos ditadores de plantão.

Hoje em dia um governo civil e eleito democraticamente pelo povo enfrenta a tirania imposta por um congresso que ameaça a legitimidade dos índios quanto à política de demarcação das terras que lhes pertence, tentando alterar o marco regulador trazendo-o para o ano de 1988, o da promulgação da atual Constituição, e deixando de lado séculos de uma história que seria não apenas subtraída, como tem sido, mas também ignorada no que diz respeito aos direitos de nossos povos tradicionais.

A consciência cívica e histórica da cidadania brasileira não pode deixar passar esse crime de verdadeiro cancelamento de povos que precisam ser reconhecidos como os detentores originais das terras que sempre lhes pertenceram. Não há argumentos contrários que possam ser usados para contestar seus direitos. Tentar explicar contrariamente a essa evidência, tais como ao dizerem que a população indígena é muito pequena para tão vastas áreas de terras incultivadas é insidioso e revelador do caráter ideológico da qual se servem os que pensam diferente dos que defendem o marco temporal original, que antecede em muito à colonização.

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LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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