Por Lincoln Penna –
Lula disse que a democracia é um conceito relativo. Inúmeras vozes rebateram essa fala, o que de certa forma era esperado.
O argumento desses que repudiaram o presidente parte com certeza da oposição que fazem entre democracia e ditadura. É preciso contextualizar esse episódio ocorrido numa defesa do regime em vigor na Venezuela, atitude que se situa na esfera do princípio de não-intervenção nas questões de outros estados nacionais soberanos. Sabe-se que no país vizinho há restrições como existem em graus variados em vários outros, mas imiscuir na vida de outros povos não é próprio do respeito à diversidade no trato das questões públicas. As restrições aos órgãos de imprensa e, consequentemente às liberdades democráticas onde quer que ocorra caracteriza uma ordem autoritária, mas cabe aos venezuelanos traçar os seus destinos, até porque nenhum povo abre mão de sua autodeterminação.
Essa condenação à Venezuela parte da suposição de que a democracia é um modelo a ser aceito por todos os países que garantem a veiculação de opiniões divergentes e os regimes que não primam por isso são considerados ditaduras. No entanto, há ditaduras que têm sido palatáveis e outras sobre as quais recaem severas e contundentes condenações. Neste caso, o argumento dos que rebatem a fala de Lula é frágil e por isso não se sustenta, na medida em que na prática a avaliação de certos governos tidos como matrizes da democracia cometem esse perjúrio político de fundo ideológico.
Por outro lado, viralizou também os que apresentam como justificativa de suas reprovações ao pronunciamento de Lula a falsa afirmação segundo a qual ou a democracia é absoluta ou não há democracia. Ora, se a democracia é absoluta deve-se contemplar todas as dimensões existentes no universo de uma sociedade e não apenas no plano da política institucional, garantidora, sem dúvida, das demais atividades de uma ordenação minimamente democrática. Porém, esse conceito de absoluto ou contempla plenamente a dimensão social ou não pode ser assim considerado.
Todavia, o nó górdio da questão se encontra no caráter de uma sociedade de classes, que não pode deixar de ser considerado, porquanto no ambiente em que uns são mais favorecidos do que outros detendo os poderes que fazem irradiar os conceitos que lhes convém, as normas e, enfim, a ideologia inerente às classes dominantes, é óbvio que a noção de democracia acaba aprisionada pelos valores dominantes que se impõem aí sim absolutamente.
Considerar a democracia tão somente a partir de uma perspectiva institucional é na verdade naturalizar as desigualdades sociais como se elas fossem algo possível de ser descartado da democracia que temos. A universalidade do valor da democracia está na defesa das conquistas que a fazem avançar, porém isso não significa que deixemos de lado ou minimizemos os efeitos perversos das desigualdades sociais crônicas a provocarem a permanente exclusão de inúmeros contingentes sociais.
No contexto da sociedade brasileira, que tem experimentado tentativas de retrocessos no que concerne à democracia política e institucional, é necessário e oportuno que se discuta não somente a democracia que temos, de alguma maneira preservada depois de uma vintena ditatorial, mas a façamos avançar para que sua relatividade desapareça de fato. Desvincular a democracia política da social em nome exclusivamente do combate à regressão de projetos autoritários é um enorme equívoco.
A melhor forma de combater os regressistas de vocação totalitária é fazer a incorporação das massas desassistidas e investir nas políticas sociais com urgência. Mas não basta isso, porque as democracias não se sustentam no mundo atual somente pelo discurso de governantes e de medidas reformistas de curto prazo com vistas a contar com o respaldo popular. A democracia ganha consistência e força persuasiva quando há mobilização consciente do papel do povo na busca de suas necessidades fundamentais.
Lula pode não ter explicitado o que queria dizer e era bom que pudesse fazê-lo, mas daí a transformar a reação numa contestação que se irradiou pela mídia existe uma grande diferença. Além disso, a frente ampla eleitoral que elegeu Lula não é nem poderia estar uníssona em termos políticos e doutrinários, uma vez que foi constituída com o único propósito de barrar a reeleição de Bolsonaro. E quando o presidente diz o que pensa ele se dirige à sua consciência e aos valores que acredita.
Ademais, quem lançou desde o seu primeiro mandato de 2003 a 2006 a bandeira do Programa Fome Zero com êxito que repercutiu em todo o mundo, conhecedor da desgraça em que vivem milhões de brasileiros, não pode se curvar as filigranas midiáticas, próprias dos que se assustam com o fervor em prol da elevação dos mais pobres às condições mínimas de dignidade. E nesse rumo a democracia ganha a dimensão de um processo ininterrupto, em razão das sucessivas demandas na direção de sua realização como democracia absoluta. Pelo menos é dessa maneira que devemos pensar.
Lula, portanto, está certo, enquanto não concluirmos as tarefas indispensáveis para socializarmos as conquistas da humanidade e proporcionarmos condições de vida plena a todos os seres humanos tudo não deixa de ser relativo, em que pese o fato de que também não se deve tolerar fraturas e percalços de governos que abusam de sua autoridade, porquanto o grande protagonista da construção democrática é o povo, até para reafirmar o sentido etimológico da palavra democracia.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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