Por Kakay –
Casos de Moïse e Durval expõem falta de humanidade entre as pessoas.
“É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas.”
(Torquato Neto, Poema do Aviso Final)
Às vezes é difícil identificar a origem da estupidez humana, pois são muitas fontes. A indiferença brutal que permeia a sociedade é o efeito dessa estupidez ou a sua causa?
O homem efetivamente despiu-se da condição de ser humano em muitas situações. Há muito tempo. O desdém com o sofrimento do outro é o ponto alto da quebra de humanidade entre nós. E, claro, há muito o que ser enfrentado no desapego seletivo que preside as relações, especialmente da nossa elite.
Os exemplos de crueldade acumulam-se a toda hora. Seja no bárbaro massacre do Moïse, seja no covarde assassinato do vizinho negro do sargento, no desprezo aos negros pelo presidente da Fundação Palmares, ou em infindáveis outros casos. O que não muda é a cor da vítima. O alvo é a raça negra. O racismo enraizado até as entranhas.
Sabe-se que o quiosque no qual Moïse foi morto continuou aberto vendendo cerveja por 3 horas com o corpo dele estendido no chão! É bom nos lembrarmos dos versos de Noémia de Sousa, no poema Lição:
“Ensinaram-lhe na missão,
Quando era pequenino:
‘Somos todos filhos de Deus; cada Homem
é irmão doutro Homem!’
Disseram-lhe isto na missão,
quando era pequenino.
Naturalmente,
ele não ficou sempre menino:
cresceu, aprendeu a contar e a ler
e começou a conhecer
melhor essa mulher vendida
̶ que é a vida
de todos os desgraçados.
E então, uma vez, inocentemente,
olhou para um Homem e disse ‘Irmão…’
Mas o Homem pálido fulminou-o duramente
com seus olhos cheios de ódio
e respondeu-lhe: ‘Negro’.”
Mas a ignorância e o desprezo pela vida vão muito além do preconceito racial. A recente tragédia, triste e chocante, com o fotógrafo suíço René Robert, conhecido e reconhecido, expôs as vísceras abertas deste mundo hipócrita em que vivemos. O famoso fotógrafo teve a fatal infelicidade de escorregar no meio da rua em Paris, após sentir tontura em uma de suas caminhadas. Ficou longas 9 horas deitado ao relento, no frio do rigoroso inverno parisiense. Isso em um bairro chique e caro, na rue de Turbigo, entre a Place de la République e Les Halles.
Dezenas, talvez centenas de pessoas passaram por ele quando estava deitado, caído e agonizando. Ninguém parou. Ninguém se importou. Acostumados a não enxergar os vários mendigos entregues à própria sorte no frio e, pior, na fome. O fotógrafo virou um invisível e morreu à míngua. Virou aquele que a sociedade não quer nem mesmo notar. Talvez na esperança fascista de que, ao não olhar o “problema”, ele desapareça. Foi um sem-teto quem chamou o serviço de emergência, mas era tarde: René já estava com hipotermia.
Remeto-me ao genial Augusto dos Anjos, no poema Queixas Noturnas, musicado por Arnaldo Antunes:
“Quem foi que viu a minha dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada.
E pela estrada, entre esses monstros, ando!
Para essas pessoas, o “problema” é o pobre, o negro, o imigrante e o desempregado. Nunca é o sistema que faz crescer cada vez mais o número de pobres, que discrimina o negro, que criminaliza o imigrante e que cria milhões de desempregados.
O que aconteceu com o fotógrafo René Robert é a prova inconteste da desumanização que estamos vivendo. E que, de certa forma paradoxal, nos aproxima. É cruel notar que os famintos, os sem-teto, os imigrantes e os negros há tempo não sensibilizam a tal sociedade organizada.
Mas é bom esse povinho cruel refletir que um desmaio em plena rua pode ocorrer, mesmo dentro da elite. Qualquer um pode cair quando acometido por problema de saúde ou por um simples escorregão. É um fato imaginar que a rua, o frio e a indiferença tratarão a todos os caídos com a mesma dureza. Não haverá diferença se o cidadão exposto no chão gelado de Paris tem a esperá-lo um apartamento com forte aquecedor ou a solidão crua das ruas.
Talvez, uma situação como essa possa mexer com a sensibilidade do deliberadamente não-solidário. Quem sabe até acaricie o coração dessa burguesia encastelada e, por medo ou sentimento de preservação, as pessoas passem a olhar o outro de maneira minimamente mais humanizada.
É triste ver que falhamos e que hoje vivemos nesse mundo sem muita expectativa de dias mais humanos ou esperança de igualdade. Este ano é crucial para o país.
Se o neofascismo vencer, nossas diferenças estarão cada vez mais expostas na crueza das ruas. É necessário acreditar que ainda é tempo de enfrentar o muro invisível que separa o homem do seu pior inimigo: ele próprio investido na falta de ética do individualismo.
Lembrando Ferreira Gullar:
“O que nos machuca não é a vontade que se tenha de machucar, mas a obviedade de nossa vida, que machuca a nós, que faz viver assim, mascarados, de aparências, e presos a dúvidas que não são nossas”.
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros. Publicado inicialmente em o Poder360.
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MAZOLA
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