Por Eloísa Machado

Ao perdoar os crimes de seu amigo Daniel Silveira, presidente fere princípio da impessoalidade e abusa do cargo para afrontar o STF.

]Um dia depois da condenação de Daniel Silveira (PTB-RJ) por crimes contra o Estado Democrático de Direito e por coação no curso do processo em razão de seus ataques ao Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro editou decreto concedendo “graça constitucional” ao deputado condenado. Com isso, livrou Silveira da pena de 8 anos e 9 meses e da multa de 192,5 mil reais que haviam sido determinadas pelo tribunal.

Entre as justificativas para a concessão da graça – uma forma de indulto individual –, Bolsonaro apontou sua “missão de zelar pelo interesse público”, além de uma “legítima comoção” da sociedade. Sociedade essa que teria ficado consternada com a condenação de um deputado que, na visão do presidente, apenas usufruiu da sua liberdade de expressão.

A Constituição dá ao presidente da República o poder de conceder o indulto e a graça, de acordo sua avaliação de conveniência e oportunidade. Esse poder discricionário, no entanto, não é absoluto: deve estar dentro dos parâmetros estabelecidos pela mesma Constituição. E, se a Constituição estabelece parâmetros na concessão de graça e indulto, há possibilidade de controle judicial sobre o seu uso. Foi o que concluiu o STF quando, em 2019, julgou uma ação direta de inconstitucionalidade sobre um decreto que havia concedido indulto a condenados por diversos crimes, entre eles crimes de corrupção.

Naquele momento, a maioria dos ministros do Supremo entendeu que é possível controlar judicialmente um decreto de indulto, seja para avaliar se o presidente da República extrapolou seu poder discricionário, seja para averiguar se o decreto esbarra em algum tipo de ilegalidade. Parte dos ministros entendia que era possível avaliar até mesmo o mérito das decisões, mas foram voto vencido. Se o Judiciário se deparar com uma escolha feita entre inúmeras opções lícitas, deverá apenas deferir a decisão do presidente da República.

O STF, que acabou de condenar Daniel Silveira à prisão, deverá em breve avaliar se a graça concedida por Bolsonaro é constitucional, já que partidos políticos anunciaram que recorreram ao tribunal para anular o perdão. Se a possibilidade de controle sobre decretos de graça e indulto já está estabelecida na jurisprudência no tribunal, o futuro julgamento deverá enfrentar uma questão principal: pode o presidente beneficiar um amigo?

A Constituição veda de forma clara atos que firam a impessoalidade da gestão pública, ou seja, que coloquem interesses pessoais à frente dos interesses republicanos. Não há nenhuma justificativa razoável para afastar a incidência desse princípio ao se avaliar a concessão de graça ou indulto. Afinal, os poderes presidenciais não estão a serviço de Jair Bolsonaro, de sua família ou de seus amigos.

A graça concedida a Daniel Silveira, ao mesmo tempo em que beneficia um amigo, serve para dar continuidade ao projeto de destruição democrática encampada por Bolsonaro desde o primeiro dia de seu governo. Isto é, serve politicamente ao presidente. Com um decreto, Bolsonaro favoreceu um amigo condenado por crimes contra o Estado Democrático de Direito, ameaçando com isso o tribunal que tem sido a principal – e por vezes a única – instância de controle sobre seus atos enquanto governante. Nos discursos, Bolsonaro sempre escolhe o STF como inimigo – assim como Silveira fez.

Com o decreto que concede graça a Daniel Silveira, Bolsonaro abusa do cargo para afrontar o Supremo. Não há mais normalidade a ser fingida.

Eloísa Machado é professora de direito constitucional na FGV Direito em São Paulo

Publicado inicialmente na Revista Piauí. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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