Por Sérgio Ricardo

Mais um alerta sanitário preocupante foi dado sobre o avanço da COVID-19 na Aldeia Sapukay, de Angra dos Reis, onde mais da metade da população da etnia Guarani Mbyá já foi infectada pelo Coronavírus: dos 350 moradores, 203 tiveram a doença desde o início da pandemia. Segundo a prefeitura local, até o momento, 200 pessoas já se recuperaram e 2 casos estão sob investigação e houve um óbito (CNN Brasil).

Em 21/07/2020, ocorreu o trágico falecimento do Cacique Domingos Benites, de 68 anos, que à época contraiu o vírus e, após ter ficado vários dias internado num hospital no município, infelizmente, veio a óbito. O Cacique Domingos era conhecido por sua antiga luta pela saúde indígena e educação diferenciadas e na defesa do saneamento básico da sua aldeia, ainda hoje inexistente, e era membro do Conselho Estadual de Direitos Indígenas (CEDIND-RJ).

No período de Março à Julho de 2020, de acordo com dados disponibilizados por órgãos de saúde, ocorreram 147 casos de COVID-19 nas aldeias fluminenses, sendo 88 em Angra dos Reis e 59 em Paraty. Na aldeia Sapukay, cerca de 30% da população havia sido contaminada.

Ainda até Julho/2020, na Aldeia de Itaxim, de Paraty Mirim, havia sido registrado 52 casos de contaminação por COVID-19, considerado um índice alto de contaminação para um contingente populacional de 170 pessoas que vivem nesta comunidade.

Segundo dados que são atualizados diariamente pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), tristemente até hoje (09/01/2021) há 44.680 casos de indígenas confirmados com COVID-19 e 914 mortos com 161 povos afetados em todo o país. Em 05/01/2021, eram 43.524 os infectados e 902 mortos (APIB).

Na guerra de mundos em que vivemos há séculos, desde o início da Colonização, o Brasil e o mundo comprometem e ameaçam seu futuro, quando partem repentinamente, seja por epidemias ou pela COVID, nossos pajés, caciques e pessoas idosas que por meio da tradição oral e cantante da cultura e sabedoria ancestral de seus povos, transmitem às novas gerações a cosmovisão e a história de seus povos originários que é a história de vida de cada um de nós!

Este quadro demonstra um preocupante e indiscutível avanço da pandemia sobre os povos indígenas tanto nas escalas nacional, quanto regional.

O grau de vulnerabilidade ao Coronavírus por parte das oito (8) aldeias indígenas fluminenses, têm aumentado de forma significativa em função do déficit sanitário provocado pela ausência de políticas públicas de saneamento básico e de condições adequadas de armazenagem ou reservação de água potável na maioria das aldeias, que são Direitos Humanos fundamentais reconhecidos pela ONU (2010) e na chamada “Constituição cidadã” (CF 1988).

Constata-se que o  poder público nunca assumiu suas responsabilidades na área do saneamento básico destas comunidades tradicionais, cuja existência de infraestruturas adequadas seria fundamental, neste momento para salvar vidas num momento de crise sanitária como o provocado pela atual pandemia.

É vergonhoso que desde março de 2001 (há quase 20 anos atrás!) tenha sido firmado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), nunca efetivamente cumprido ou respeitado, que foi proposto à época pelo Ministério Público Federal de Angra dos Reis e assinado pela concessionária ELETRONUCLEAR, órgãos ambientais e as prefeituras locais, que previa e obrigava a realização de investimentos financeiros por parte desta grande empresa do setor energético em projetos de saneamento básico para beneficiar e melhorar a qualidade de vida nas aldeias da Costa Verde, que seria uma das contrapartidas pelo licenciamento ambiental da usina nuclear Angra 2.

Ainda hoje, também falta um Plano de Emergência e Evacuação que garanta a efetiva segurança e saúde das populações urbanas e rurais e das aldeias situadas nestas cidades, caso em algum momento ocorra um indesejado eventual desastre nuclear nesta região que, desde a ditadura militar (1964-1985) concentra num local inadequado um complexo de usinas atômicas no município de Angra dos Reis.

Provavelmente, se ao longo das últimas décadas, estes investimentos preventivos no setor saneamento, tivessem de fato sido feito por parte do poder público e da poderosa ELETRONUCLEAR, que são considerados de baixo custo financeiro no caso das aldeias do estado onde não há uma grande concentração populacional, é bem provável que teríamos tido melhores resultados em relação à aplicação dos protocolos adotados durante a pandemia, em conjunto, por técnicos das prefeituras com a orientação da equipe da Secretaria Estadual de Saúde (SES), sobre os quais é preciso reconhecer sempre que estes profissionais da saúde tem tido uma atuação incansável e extremamente dedicada, no que pese as limitações orçamentárias existentes.

Com estes investimentos que nunca saíram do papel, certamente não estaríamos diante de um novo cenário de risco de genocídio e etnocídio dos povos originários no país.

Ao invés disso, os custos caríssimos das obras superfaturadas de construção de Angra 2 viraram caso de Polícia Federal que investiga denúncias de corrupção que envolvem autoridades federais e mega empreiteiras. Lembro de um relato forte e indignado feito por uma das lideranças indígenas de Paraty num encontro do CEDIND-RJ em sua aldeia: ‘Cacique viu na TV que o dinheiro do saneamento básico das aldeias foi roubado pelo presidente da República e ministros!’

Chama a atenção a histórica omissão, ausência e prevarização do governo federal, através do Ministério da Saúde, tanto em relação ao antigo déficit de saneamento básico nos territórios indígenas, como durante a pandemia.

O Rio de Janeiro é originalmente um território indígena da nação Tupinambá que, no processo de Colonização européia, foi lavado no sangue dos povos originários que foram em sua maioria dizimados brutalmente.

Que neste ano novo que se inicia, “Nhanderú etê” (Deus verdadeiro e supremo do universo, na língua tupi-guarani), venha a curar a nossa mãe Terra (Nhandecy) dos cenários de sucessivas crises ecológicas, hídricas, sanitárias e da emergência climática, provocadas pelo “progresso destrutivo” do Capital com sua ganância ilimitada por lucros.

Assim como, os tempos por vir, nesta verdadeira “guerra de mundos” (Aylton krenak) em que vivemos, venha a libertar o “povo da mercadoria” (Davi Kopenawa), com seus consumismos desenfreado e sem limite, das “pestes que devoram a humanidade”.

Em nossa ancestralidade, a Terra sempre cuidou de nós. Quando será que, finalmente livres da lógica do “deus mercado”, voltaremos a ser os guardiões e cuidadores da Terra!?

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Leia também:

Mais da metade de uma tribo indígena de Angra dos Reis é infectada pela Covid-19 (CNN Brasil)


 

SÉRGIO RICARDO VERDE – Ecologista, membro fundador do movimento BAÍA VIVA, gestor e planejador ambiental, produtor cultural, engajado nas causas ecológicas e sociais, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, membro do Conselho Estadual de Direitos Indígenas (CEDIND-RJ) pela organização GRUMIN presidida pela escritora Eliane Potiguara.