Por Lincoln Penna

Quem estiver ligado ao que se passa na esfera política do país já deve ter percebido que o conceito de democracia tem sido constantemente associado à tolerância, o que de certa forma faz sentido em razão da irrupção de um discurso de extrema-direita que ganhou fôlego com o bolsonarismo.

Dentre as forças políticas que assim procedem se encontram as esquerdas. No intuito de combater a espiral negativista expressa pelos que verbalizam o discurso antidemocrático a investir contra as instituições políticas como se estas favorecessem o comunismo, expediente que faz parte da retórica clássica dos que prezam a intolerância no campo das ideias, as correntes de esquerda têm se apegado aos valores civilizatórios fundamentais, tais como a coexistência das diferenças de opinião.

Contudo, cabe uma observação que não indo de encontro a essa defesa dos valores que devem ser prezados, daí a intransigente defesa da tolerância política e ideológica, é preciso que se  acrescente algo mais do que essa atitude defensiva. Creio que certos postulados caros à esquerda precisam ser evocados. Dentre eles alguns pressupostos como o de entender a democracia como um processo social e político em permanente construção e reconstrução, de onde derivam novas aquisições de direito e deveres da cidadania.

A esse pressuposto básico acrescente-se a busca igualmente constante da igualdade como meta a ser alcançada, cujo decorrer dessa incessante procura reduzir as distâncias entre os mais bem aquinhoados e os que se encontram em condições de vulnerabilidade. Este é um postulado a ser considerado como parte inalienável das práticas de esquerda e independentemente da conjuntura mais ou menos favorável ele não pode ser considerado como algo secundário.

É exatamente no combate às narrativas regressistas, reacionárias e antidemocráticas que precisa ser evocada e praticada a luta pela justiça social, elemento cuja ausência numa sociedade desigual caracteriza a exclusão de inúmeros contingentes sociais atirados à própria sorte. Afinal, a escalada capitalista em sua etapa mais agressiva abriga quando convêm as alternativas mais extremadas como o fascismo, braço irracional das investidas da lógica igualmente irracional da acumulação de capital quando predomina no neoliberalismo a financeirização a dominar o mundo.

Ou bem a democracia traduz o seu sentido etimológico e neste caso ela deve ser o regime político que prioriza o acesso de todos os seres humanos aos bens produzidos pela humanidade, de modo que eles sejam distribuídos equitativamente como resultado dessa produção coletiva, ou continuaremos a esgarçar cada vez mais o tecido social e com isso aprofundando as diferenças que multiplicam tantos os pouquíssimos indivíduos que detêm  o maior quinhão de recursos, quanto as multidões carentes em diversos graus de necessidades não atendidas total ou parcialmente.

A defesa da democracia como mero anteparo civilizatório é importante. Porém, a sua efetiva conquista deve ser perseguida, principalmente em sociedades que apresentam um quadro de forte deficiência no que respeita aos valores amplos da democracia. Esta percepção e a mobilização das forças sociais vivas, sobretudo as do mundo do trabalho produtivo, são indiscutivelmente veículos capazes de fazer valer esse embate em torno da democracia. Trata-se de um momento oportuno para fazer valer o seu valor despido das vocalizações próprias da intransigência dos que resistem às transformações sociais.

Um outro postulado muito usado pela ultradireita é o da liberdade de expressão. Sem dúvida, este é também um postulado democrático, mas não no sentido de usá-lo como faz os ideólogos dessa corrente antidemocrática para ofender e atacar  com a violência que os caracteriza todos os que são considerados portadores de supostos objetivos contrários à família e favoráveis à adoção de alternativas ditatoriais, mantra sistemático de seus pronunciamentos produzidos em nome da liberdade.

Na verdade, é necessário que se distinga a liberdade enquanto libertação do indivíduo sujeito às imposições que os constrange ou objetivamente os explore, daquela ideia vaga da liberdade para que tudo se mantenha no lugar, ou seja, a liberdade imóvel, passiva, avessa a mudanças porque resultante de uma atitude reativa aos avanços da humanidade. Esta liberdade não altera em nada a estrutura desigual da sociedade. É a liberdade do contrassenso, absolutamente insossa e desprovida de qualquer valor senão a do conservadorismo mais antissocial.

Por último, existe a democracia do consenso. Esta se baseia no convívio das partes litigantes contraindo ambas um pacto pelo respeito às diferenças de opinião dentro de uma ordem democrática capaz de ajuizar os conflitos próprios das lutas de classes em sociedades onde estas são consideradas inevitáveis, mas em condições de não produzir eventos que descambem para a violência cotidiana.

Os consensos são organizados mediante o trato da política, sem a qual nenhuma das forças em conflito será capaz de fazer valer os seus interesses. E são estes que garantem o funcionamento do que se condicionou designar de democracias clássicas ou liberais, que no instante em que mergulhamos no mais terrível estágio da exploração capitalista ela própria tem se tornado inviável.

Existem vozes que sustentam que a denominada democracia burguesa é tão maléfica quanto toda e qualquer democracia que possua um conteúdo autoritário senão totalitário. Esta visão é equivocada se considerarmos que as burguesias historicamente surgiram no embate contra os regimes absolutistas, para só considerarmos os tempos modernos e contemporâneos. O próprio Marx considerou a burguesia uma classe revolucionária em seus tempos de ascensão ao poder, sem deixar de considerar que ela implantou uma outra ditadura, a do capital sobre o trabalho.

Todavia, em determinados momentos históricos as esquerdas se valeram e se valem até hoje de articulações conjuntamente com representantes dessa classe em ocasiões em que as suas vertentes mais radicais ou extremadas buscam soluções imediata diante dos impasses decorrentes do aguçamento das lutas de classes. Foi assim por ocasião das frentes únicas contra o nazifascismo, como foi assim também nas lutas perlas liberdades democráticas quando da resistência à ditadura militar e empresarial brasileira do período de 1964 a 1985, pelo menos.

Diabólica as burguesias podem ser, quando abraçam as soluções autoritárias que ferem e sangram as classes populares, mas enquanto não for possível substituir o modo de vida burguês e capitalista a preservação das liberdades públicas e democráticas é importante, sobretudo em face de alternativas que atentem contra a liberdade e a vida, em última instância, da vida societária..

Para a esquerda vale a pena preservar as conquistas sociais, trabalhistas em especial, bem como sua manutenção e ampliação, sem que se abdique de um projeto socializante e a tarefa de impedir a maré montante da intolerância travestida em falsa defesa da pátria, família e da liberdade. Afinal, esse slogan já demonstrou o quanto ele é voraz na extração da mais-valia, além de causador de males reais aos direitos de existência do ser humano.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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