Por Lincoln Penna –
Com o título de A cassação da nacionalidade, o jornalista, acadêmico e deputado da então Frente Parlamentar Nacionalista, Barbosa Lima Sobrinho escreveu em sua coluna do Jornal do Brasil de 14 de março de 1976, em plena ditadura à época sob o comando do general Ernesto Geisel, um de seus mais oportunos artigos.
Vivia-se os tempos do exílio de brasileiros de forma voluntária ou imposta por parte da ditadura. Neste caso, verdadeiramente expurgados do país e impedidos de retornarem ao seu país, e em alguns casos punidos com a recusa do fornecimento de passaportes igualmente cassados pelas autoridades do regime militar.
Nesses anos de cerceamento das liberdades democráticas, com a censura a mirar toda e qualquer manifestação crítica às decisões emanadas dos governos ditatoriais, a palavra escrita do colunista do JB era um bálsamo em meio à mediocridade a povoar uma imprensa amordaçada e constantemente ameaçada pelo regime imposto à nação pelo golpe de abril de 1964.
Com o Parlamento submetido a pressões de toda ordem e sem que seus membros pudessem, por isso mesmo, exercer plenamente as suas prerrogativas, com a mídia sob permanente tutela, as universidades públicas a sofrerem intimidações junto aos seus dirigentes e, tendo os seus campi ocupados indevidamente posto que quebrando a autonomia universitária com vistas à reprimir estudantes e servidores, e o judiciário a sofrer as pressões veladas ou não, restavam os artigos de jornalistas como Barbosa Lima Sobrinho.
Suas análises sobre a situação do país sempre veiculadas de forma elegante, porém contundente e fundamentado em seus argumentos, chegava a todos os seus leitores e criava embaraços aos poderosos de plantão.
Na coluna do dia em que estou me baseando, ele foi muito feliz ao incluir como um dos alvos da política de cancelamento. O elemento nacional não é propriedade dos governos de ocasião a julgar procedente ou não a condição da nacionalidade. Esta é própria da cidadania e deve ser respeitada. Da mesma forma, que devem ser respeitadas as ideias e opiniões que venham de encontro a dos governantes.
Faço o paralelo entre essa cassação da nacionalidade mencionada por Barbosa e a cassação da racionalidade, que tem sido uma constante no Brasil imerso na cultura do ódio fomentado que foi pela ação deliberada nesse sentido de Bolsonaro e seus mais ardentes admiradores e seguidores, cujo episódio do dia oito de janeiro deste ano é uma demonstração do desprezo da razão substituída pelo apelo à violência indiscriminada articulada contra os que pensam diametralmente aos seus impulsos delirantes e fascistóides.
Recorro à Georg Lukács em sua obra intitulada “Destruição da Razão”, na qual exerce uma vigorosa crítica ao fascismo em geral, mas particularizando o nazismo alemão. O irracionalismo em que se abastece a forma mais agressiva de uma extrema-direita surgida na primeira grande crise do capitalismo no século XX, serviu de combustível para arrebanhar as massas insatisfeitas com o desemprego e a falta de perspectivas. Como é atual a análise empreendida pelo filósofo húngaro.
E essa lembrança tanto do artigo de Barbosa quanto de Lukács faz muito sentido hoje em dia. Afinal, se naqueles tempos cruentos e tenebrosos de ações persecutórias e de torturas sistemáticas aplicada aos presos políticos, as cassações eram uma forma de violência entre tantas outras, sua prática silenciava e procurava castrar a cidadania em seus mínimos direitos. Daí, fazer sentido o título e a matéria do citado artigo, quando o autor se refere à cassação da nacionalidade, do qual me sirvo parafraseando para me referir a outo tipo de cassação, o da racionalidade.
Todos os regimes ditatoriais começam e finalizam seu curso eliminando a razão, porque o seu uso no exercício do contraditório, impossível de se praticar nos regimes ditatoriais, é absolutamente dispensável em sociedades violentadas pela repressão. Eliminar, dessa maneira, a liberdade de contestação através de argumentos racionais é algo impensável no caso de governos autoritários.
Durante a vigência do governo Bolsonaro, cuja escalada em direção à ditadura felizmente não se consumou, a racionalidade foi duramente combatida pelos meios os mais diversos. Deles sobressaíram o negacionismo em face das evidências científicas, por exemplo, por ocasião da pandemia. Mas, também, ocorreu em outras esferas, particularmente no que se refere a políticas ambientais, o que favoreceu a grilagem de terras e a agressão às reservas indígenas em nome de um falso progresso. Daí, a agressão à natureza e aos que cuidam da floresta, ou seja, os povos originários.
Infelizmente não estamos livres do horror desse perigo de se ter quem vise combater a razão com base em preconceitos e em artimanhas visando criar fantasmas para parte de uma sociedade desenformada ou sensível a tais pregações erráticas. Mas, a razão deve não apenas ser objeto de cuidado para que seja usada a serviço do bem-estar do povo, mas praticada para que se busquem elementos da realidade em que se vive para entender os percalços que nos afligem.
Para isso, um de seus instrumentos é a educação amparada pelo conhecimento de nossa história, e cujo processo não se prende unicamente a currículos formais, mas a socialização de posturas éticas e de apreensão do conhecimento.
Educação significa esclarecimento, abertura para o mundo, para o desconhecido. Ninguém precisa ser necessariamente erudito, mas deve procurar se informar e formar suas opiniões acerca das circunstâncias de sua existência. Os verdadeiros sábios são aqueles que entendem a nossa relação de seres humanos com aqueles seres que conformam a vida em nosso planeta.
Quando a ignorância é fomentada através de crendices e usos indevidos da fé de nossos compatriotas em nome de projetos assumidamente antidemocráticos a razão deve ser sempre o nosso instrumento de defesa da democracia enquanto espaço de divergências, pois esta foi e tem sido construída com base na troca de ideias e no bom senso cultivado pela humanidade ao longo do tempo. Apelar para a desinformação é parte de um projeto de poder. Combatê-lo é, assim, um dever cívico e caro aos que prezam pelos bens civilizatórios.
A ignorância costuma ser utilizada pelos que desejam impedir as mudanças, as grandes transformações que emanam exatamente da compreensão, da necessidade de se mudar as condições de vida, seja no plano individual ou no plano social, principalmente.
A luz da sabedoria fundada conjugada com a tolerância e o costume do respeito ao outro descortina a lucidez, caminho seguro para o aprimoramento do destino que nos embala na busca de um mundo melhor.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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