Por Roberto Amaral –
A majoritária cor da classe dominante no Congresso que hoje temos revela a deterioração da democracia representativa.
Em pronunciamento ao Congresso Nacional, quando festejava com Artur Lira e Rodrigo Pacheco a promulgação da Reforma Tributária, que seu ministro da Fazenda qualificou de “perfeita”, o presidente Lula sentiu-se no dever, que as circunstâncias talvez expliquem, de saudar os parlamentares, esses que vêm coartando o governo em sua inclinação progressista. Com as vistas voltadas para o Plenário, afirmou: “O Congresso é a cara do Brasil”. O presidente não se referia a um Congresso in abstrato saltado das páginas dos manuais de ciência política, mas a um colegiado específico, precisamente a este que aí está, ao fim de seu primeiro e deletério ano de legislatura. Lula referia-se claramente ao caráter sociológico da composição parlamentar. Errou. Como ter a cara do Brasil um Congresso de homens brancos e majoritariamente ricos, quando 55% de nossa gente se declara de cor parda ou preta, quando 51% da população é constituída de mulheres que ocupam apenas 8% das cadeiras na Câmara dos Deputados?
Fixando-se na aparência, Lula deixou de ver (ou não quis ver) a essência degenerada do Congresso como instrumento da dominação de classe que é, e assim destoante da realidade social brasileira, formada por trabalhadores e assalariados de um modo geral, multidões de desempregados, quase todos sem proteção previdenciária, enfim uma nação dilacerada: 37% de sua gente passa fome; algo como 100 milhões de mulheres, homens e crianças formam o grupo dos que não sabem se almoçarão dois dias seguidos; milhões de camponeses sem terra pedem trabalho, numa economia capitalista que ainda convive com o latifúndio; milhões de homens e mulheres sem teto, milhões de “moradores de rua” que morrerão sem saber o que é o Estado brasileiro. Em suma, a agora celebrada 9ª economia do mundo é, ao mesmo tempo, a segunda maior concentração de renda do planeta, ultrapassada nessa miséria apenas pelo Catar. Esses brasileiros não são representados no Congresso que aí está.
A cara do atual Congresso, registrada pelo DIAP (diap.org.br), indica a presença majoritária dos empresários na Câmara dos Deputados: 174, nada menos de 33,9% de seu total (513). Se a esse contingente somarmos 68 advogados, 24 médicos, 24 policiais, 19 administradores, 12 engenheiros, nove agricultores, sete delegados de polícia, nove militares e três administradores públicos, teremos a representação dos interesses da classe dominante: ela controla direta ou indiretamente 67,4% das cadeiras da Câmara. No contrapelo, apenas um sindicalista e um operário! A majoritária cor da classe dominante no Congresso que hoje temos revela a deterioração da democracia representativa.
Esse Congresso, porém, nada ou muito pouco se distingue de sua origem histórica: no nascimento um colégio de nobres – duques, viscondes e marqueses improvisados –, ao lado de latifundiários e representantes do clero católico e já do exército; na essência, o Congresso de Lira e Pacheco reproduz aquele plenário que na Constituinte foi frequentado pelo deputado Lula. Terminada a Constituinte, vem, legislatura por legislatura, desfazendo os avanços sociais da Carta promulgada pelo Dr. Ulysses. Sua tarefa presente é revogar, sem consulta à soberania popular, o sistema presidencialista – já transformado em um mostrengo, um híbrido no qual o parlamento governa controlando o orçamento da União. Efetiva-se aos poucos, com o concerto da cidadania silente, a mesma ditadura da Câmara que, após manietar o segundo governo Dilma, natimorto, determinou o impeachment da presidente, ao arrepio da Constituição, mas com o beneplácito do poder judiciário, sempre pronto a legitimar os golpes de Estado, ainda quando não acicatado pelas baionetas (como fôra em 1964).
A composição social do Congresso, que Lula não viu, é representativa daquele pequeno grupo de homens brancos que controlam a economia nacional e, por via de consequência, a política, o que lhes dá condições de formar os corpos legislativos com seus despachantes de luxo. Representam o 1% mais rico da população, cuja renda média mensal per capita foi de R$ 17.447 em 2022, ou seja, uma renda média real mensal 32,5 vezes maior que o rendimento médio da metade mais pobre do povo brasileiro!
Assim, quando trabalha, e às vezes o faz com afinco, como nas últimas semanas, o Congresso simplesmente exerce o ofício de protetor dos interesses dos poderosos, ou seja, atua contra o país e seu povo, e exerce extremada vigilância contra eventuais avanços sociais e políticos suscitados pela centro-esquerda, seja mediante ação executiva, seja pela via legislativa. Essas tentativas de avanço, mínimas que sejam, são atropeladas pelo rolo compressor da direita, que se move a partir do presidente da Câmara dos Deputados e chega até ao mais obscuro membro do “Centrão”, o valhacouto que constitui a base fisiológica dominante nas votações das duas casas do Legislativo. Assim, o Congresso que não tem a cara do povo brasileiro move guerra sem quartel contra o MST e qualquer tentativa de democratização da terra, derruba a iniciativa do marco temporal para legitimar o avanço sobre as terras indígenas, ataca o ensino publico, de olho nos recursos do Fundeb e do FNDE. Emperra todas as medidas que digam respeito a direitos sociais, trabalhistas ou previdenciários, emperra toda tentativa de regulamentação do capital, e se impõe contra qualquer mecanismo de combate à discriminação étnica ou de gênero. Para desorganizar o país, combate o governo naquilo que ele tem de melhor: os projetos sociais. É um aliado dos grileiros e dificulta a defesa do meio ambiente. De vez em quando se dá ao luxo de aprovar uma ou outra proposta do executivo, mas mesmo assim ao preço do assalto ao erário. Esse tráfico a grande imprensa, naturalizando-o, batiza de “negociações entre Poderes”.
Antes de encerrar os trabalhos da atual legislatura, a Comissão Mista de Orçamento aprovou o projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA), com um corte de R$ 6 bilhões no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), menina dos olhos de Lula e reconhecido por gregos e troianos como fundamental para a retomada do desenvolvimento. O corte se deveu a manobra para aumentar o volume das emendas parlamentares, aquelas que são destinadas aos redutos de suas excelências, preparando-se a um só tempo para a eleição de seus prepostos em 2024 e o financiamento de suas próprias campanhas, em 2026, pois a reprodução do mandato é o mandamento básico do parlamentar de hoje.
O Relatório da CMO prevê R$ 16,6 bilhões para as emendas de comissões, atalho criado para substituir o “orçamento secreto”, que foi muito mal-recebido pela sociedade. Se depender dessa Comissão, nada menos de R$ 25 bilhões serão destinados a emendas individuais dos congressistas, e outros R$ 11,3 bilhões às emendas de bancada. O valor das emendas parlamentares chega a R$ 53 bilhões.
Mas o assalto não está de todo completo. A esses valores, devem-se somar os recursos destinados ao Fundo Partidário, R$ 462 milhões para 21 partidos, e nada menos que R$ 4,96 bilhões (o título da prebenda é Fundo Eleitoral) para o financiamento das eleições de 2024.
O Congresso que, além do PAC, corta recursos da Saúde (851 milhões), Transportes (452 milhões), Cidades (336 milhões), Defesa (331 milhões), e Educação (320 milhões), ou seja, R$2,2 bilhões, é o mesmo que abocanha 58,3 bilhões para a farra eleitoral, pois esta é a soma do absurdo que não escandaliza a opinião pública, também conhecida simplesmente como “opinião publicada”.
Um Congresso com a cor de nosso povo não cometeria tantos disparates.
Mas, em meio a tudo isso, e ao cabo do ano legislativo, o senador Rodrigo Pacheco poderá dizer-nos que o Congresso terminou por nos legar uma Reforma Fiscal há algo como trinta anos reclamada pela classe dominante. Mas a dita reforma, costurada como colcha de retalhos (método necessário para acomodar interesses) nada tem de “perfeita”, como anunciou insistentemente o ministro da Fazenda. Trata-se mesmo de reforma superficial, perfunctória, inconclusa, talvez tão-só técnica, mas sem cor: não cuida dos interesses dos consumidores, a grande massa dos brasileiros. Seu mérito, decantado pelo governo, pela direita e pela Faria Lima, e por meia dúzia de tributaristas, é a promessa de simplificar a arrecadação e o trabalho dos contadores e advogados das empresas, e a consequente redução dos recursos judiciais e administrativos. Promete, de quebra, economia de custos para empresas e agilidade à burocracia especializada. As empresas de rating aplaudiram. É, sim, alguma coisa ante a barafunda antiga, mas ainda muito pouca coisa para justificar a alegria de um governo de origem na centro-esquerda. Mantém de pé a perversidade visceral do caráter regressivo da carga tributária, punitivo do pobre e benfeitor dos especuladores e dos rentistas de modo geral.
Fugindo da necessidade social do imposto progressivo, fundamentalmente incidente sobre a renda, a propriedade e a herança, a reforma “perfeita” mantém o peso da arrecadação, ou seja, da tributação, sobre o consumo, isto é, sobre os pobres, cujo consumo de subsistência devora o salário. Assim, o Ministro Haddad e o contínuo que lhe serve café e água gelada na Esplanada pagam o mesmo imposto quando no supermercado ou no armazém da periferia compram arroz ou feijão.
O Congresso brasileiro não é a cara de nosso povo. E jamais o foi, pois foi sempre o que é, a representação da dominação de classe que pervade, desde a colônia, todas as instâncias do poder: desde a falsa nobreza, latifundiários e traficantes de escravos, o clero e os militares (protetores da Ordem) aos beneficiários contemporâneos da economia primária agroexportadora, os industriais que não investem em tecnologia (preferindo o leasing) e os especuladores e rentistas de um modo geral, os comissários do grande capital internacional, seus delegados, seus procuradores, seus porta-vozes e seus lugar-tenentes.
Mais do que todos nós, Lula, constituinte de 1988, conhece essa realidade. Não terá sido em vão sua caminhada histórica — menino flagelado das secas do semiárido pernambucano, tangido pela fome para sobreviver como favelado em Santos –, até chegar, pela terceira vez, à presidência do país, que já palmilhou milhares de vezes, de ponta a ponta.
O mais representativo de quantos presidentes tivemos, Lula conhece como ninguém o povo brasileiro, e sabe que ele não se identifica nem se confunde com aquela gente que lotava o Plenário da Câmara dos Deputados na sessão do Congresso do dia 20 de dezembro.
(Colaboração Pedro Amaral)
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle). www.ramaral.org
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