Por Fábio Capela

Dentro do tema geral da história das drogas o presente artigo pretende analisar especificamente as referências ao seu consumo encontradas nas crônicas bíblicas.

De antemão já se alerta que, com isso, não se está tentando fazer alguma crítica à Escritura e sim demonstrar que historicamente a relação do homem com as drogas sempre foi harmoniosa, o que é corroborado pelas narrativas bíblicas.

Pois bem, a história do homem é a história das drogas. E a história das drogas é tão antiga e complexa quanto a própria humanidade. Registros de que o homem consome drogas para alimentação, para fins medicinais, para alterar seu estado de consciência, e/ou, notadamente ao que interessa a este artigo, para fins religiosos remonta a milênios. Não por acaso, “é frequente atribuir-se um caráter mágico às substâncias que possibilitam comunicar-se com os deuses” . [1]

Alguns vestígios arqueológicos, como pinturas rupestres da Idade da Pedra e resquícios (de vinho) em jarros de cerâmica, sugerem que antes mesmo das primeiras civilizações, e ao menos desde o Paleolítico Superior (entre 40 a 10 mil anos atrás), o homem já fazia uso de substâncias orgânicas de efeito alucinógeno; seja na forma de plantas (a cannabis, o ópio e o peiote, por exemplo) ou fungos (como a amanita muscaria). [2]

Estima-se que as primeiras drogas tenham surgido em plantas como uma espécie de coevolução entre os reinos vegetal e animal. É provável que algumas plantas possam ter desenvolvido “defesas” químicas contra a voracidade animal, possibilitando o aparecimento de drogas mortais para espécies sem papilas gustativas ou sem olfato apurado. Por isso durante milhões de anos os frutos e vegetais eram, em grande medida, pequenos e venenosos. Só com a revolução agrícola do Neolítico é que surgiria um trigo não tóxico, assim como leguminosas comestíveis e frutos com polpas suculentas. [3]

Particularmente, na Bíblia são várias as referências a drogas. Por exemplo, quanto ao vinho, Noé, após o dilúvio, embriagou-se e ficou nu (Gênesis, 9:21-23). O vinho também aparece na passagem em que Ló mantém relação sexual com suas duas filhas (Gênesis, 19:30-38).

Aliás, segundo a narrativa bíblica, o primeiro milagre de Jesus da transformação da água em vinho já dá conta de sua importância para a religião cristã (João, 2:3-11). O que também se constata pela transubstanciação do sangue de Cristo justamente em vinho (João, 6:53-57). O prestígio da referida bebida alcoólica para os seguidores de Jesus é uma herança da afeição que os próprios judeus já evidenciavam por ela, comprovado por sua inclusão em rituais religiosos e mesmo em celebrações. A Bíblia também expressa como o cristianismo herdou tal aspecto de religiões mais antigas em relação ao uso de drogas (Mateus, 26:26-28).

No que se refere à cannabis, embora nas edições atuais da Bíblia se faça referência a cana aromática ou cálamo aromático, segundo o historiador canadense Chris Bennett, houve um erro, proposital ou não, e que parece ter ocorrido quando da tradução do Velho Testamento do hebraico para o grego. Em verdade, conforme linguistas, antropólogos e botânicos atuais tem afirmado, a palavra originária kaneh bosm referenciada diversas vezes no Antigo Testamento é o mesmo que cannabis. Através de estudos etimológicos comparativos documentou-se que nas Escrituras Hebraicas e sua tradução em aramaico, o cânhamo é referido como q’neh bosm (variavelmente traduzido como kaneh bosm, keneh bosem, kaniebosm), sendo também traduzido no hebraico tradicional como kannabos ou kannabus. A raiz kan nesta construção significa cana ou cânhamo, enquanto bosm significa aromático. A palavra aparece em Êxodo, 30:23; Cânticos, 4:14; Isaías 43:24; Jeremias, 6:20 e Ezequiel, 27:19. A tradução feita para cálamo é também refutada por ser esta última planta bastante comum, com baixo valor financeiro e não possuir as qualidades atribuídas ao kaneh bosm. [4]

Como afirmado por Rowan Robinson: “Outros estudiosos discutiram a respeito, mas etimologistas da Universidade Hebraica, em Jerusalém, concluíram em 1980 que a palavra kine-boisin, do Antigo Testamento, significa de fato cannabis”. [5]

O termo Cristo, por sua vez, possui o significado de ungido, fazendo referência ao óleo original da unção, cuja receita está descrita em Êxodo, 30:23-24. Nela se estabelece que, para cada 3,66 litros (1 him) de azeite de oliva, devem ser espremidas diversas ervas, incluindo mirra, cássia e 2,835 kg (250 siclos) de cannabis.

O nome “Jesus Cristo” (“Yeshua Hamashia” em hebraico, do grego “Χριστός”, “Khristós”) tem o mesmo significado que a palavra hebraica “Messias”, e, na tradução, quer dizer “Ungido”, um termo que faz referência ao óleo da unção que continha kaneh bosm, ou, conforme já dito, cannabis. [6]

Também deve ser entendido que no mundo antigo doenças como a epilepsia eram atribuídas a possessões demoníacas e curar alguém de tal doença, mesmo com a ajuda de certas ervas, era o mesmo que exorcizá-las ou milagrosamente curá-las, ou seja, o que se chamava de “possuído por demônios” poderia ser interpretado como epilepsia, doença cujos sintomas a cannabis ajuda a aliviar.

Sem a intenção de colocar em questão dogmas religiosos, ainda assim, em se reconhecendo que o óleo descrito no Êxodo, de fato, continha altos teores de cannabis, o produto certamente seria potente o suficiente para explicar alguns milagres de cura atribuídos a Jesus. Afinal, cannabis tem se mostrado eficaz no tratamento não apenas de epilepsia, como também de outras doenças que Jesus e seus discípulos curaram, como doença de pele (o termo “lepra”, usado na Bíblia para indicar várias doenças diferentes, poderia corresponder a lesões de pele tratáveis pelo óleo de cannabis) (Mateus, 8:1-4, 10:8, 11:5; Marcos, 1:40-45; Lucas, 5:12-14, 7:22, 17:11-19), problemas de visão como o glaucoma (João, 9:6-15) e problemas menstruais (Lucas, 8:43-48).

Portanto, como se vê, substâncias que hoje em dia são demonizadas no altar profano da insana guerra às drogas são descritas na Bíblia como plantas e produtos não só de consumo tolerado como de caráter verdadeiramente sagrado.

Com isso, as narrativas da mitologia cristã ajudam a desmistificar a relação dos homens com as drogas, nomeadamente com a cannabis.


[1] BERGERON, Henri. Sociologia da droga. Tradução de Tiago José Risi Leme. Aparecida: Idéias&Letras, 2012, p. 20.
[2] Sobre o tema ver: CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019; CARNEIRO, Henrique; VENÂNCIO, Renato Pinto (org.). Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda, 2005.
[3] Cf. ESCOHOTADO, Antonio. História elementar das drogas. Tradução de José Colaço Barreiros. Lisboa: Antígona, 2004; ESCOHOTADO, Antonio. Historia general de las drogas. Madrid: La Emboscadura, 2017. Ebook versão Kindle; ESCOHOTADO, Antonio. O livro das drogas: usos e abusos, desafios e preconceitos. Tradução de Carlos D. Szlak. São Paulo: Dynamis, 1997.
[4] BENNETT, Chris. Antecedentes/história antiga. In: HOLLAND, Julie. O livro da maconha: o guia completo sobre cannabis, seu papel na medicina, política, ciência e cultura. Tradução de Éder Bernardo e Silvana Moreira. Rio de Janeiro: Vista Chinesa, 2020. p. 43-50.
[5] ROBINSON, Rowan. O grande livro da cannabis: guia completo de seu uso industrial, medicinal e ambiental. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 57.
[6] Embora Jesus não tenha chegado a batizar nenhum de seus próprios discípulos, envio-os para se curarem com o óleo da unção (Marcos, 6:13). Da mesma forma, após a morte de Jesus, Tiago mencionou o óleo como cura em nome do Senhor (Tiago, 5:14).
[7] BENNETT, op. cit., p. 47.

FÁBIO CAPELA é doutorando pela Universidade de Coimbra-Portugal. Mestre pela UFPR. Juiz de Direito TJ/PR. Professor de Direito Penal na Escola da Magistratura do Paraná. Membro da AJD.

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Justificando.

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