Por José Carlos de Assis* e Paulo Lendesay**

O chamado Plano de Recuperação Fiscal do Rio de Janeiro é a consagração absoluta da falência do Estado no meio de uma crise financeira sem precedentes. Com a virtual impossibilidade de cumprir as condicionalidades exigidas no programa draconiano, o saldo a pagar da dívida atingia R$ 34 bilhões, quase metade do orçamento, em outubro último. Mesmo que o Estado vendesse todos os seus ativos, inclusive a Cedae, como exigido pelo Governo federal, o grosso do endividamento não se alterava. Ao contrário, continuará a crescer até 2023.

Como conseqüência dessa situação, o Estado do Rio perdeu totalmente sua autonomia e soberania financeira. Todas as suas contas, sobretudo as de pessoal, estão sendo comprimidas no limite e vigiadas por uma comissão criada pelo Governo federal, com poder de veto sobre as principais despesas. A receita de privatizações não será de aplicação livre. Terá que ser obrigatoriamente destinada a pagar o serviço da dívida pública estadual. Os próprios empréstimos a serem autorizados pelo Governo também se destinarão a pagamento da dívida.

O exemplo do Rio ilustra com perfeição o fato de que o chamado Plano de Recuperação Fiscal e o que chamam de novo Pacto Federativo não se destinam a viabilizar a recuperação financeira dos Estados, mas ao esmagamento da Federação, levando ao extremo a centralização financeira e fiscal pelo Governo federal. Seu objetivo é capturar os entes federativos a partir do aumento da dívida pública e o estabelecimento de condicionantes para créditos marginais, num brutal sistema de financeirização das economias estaduais via securitização.

Tudo é feito no sentido do ajuste fiscal federal. Os recursos líquidos correspondentes ao serviço da dívida dos Estados se destinam à geração de superávit primário no orçamento consolidado da República. Esse dinheiro, naturalmente, não vai para investimentos. Vai para o pagamento do ajuste fiscal federal. Na prática, todo o esforço fiscal dos governos estaduais é consumido na financeirização da economia, isto é, não para gerar gastos reais e investimentos, mas juros, que não financiam a economia real nem a geração de emprego.

A opinião pública, impressionada com o massacre midiático sobre corrupção, pensa que a crise fluminense se deve aos roubos de Sérgio Cabral e de Pezão. É um engano. O que foi desviado por esses meliantes é uma fração mínima do assalto aos cofres estaduais praticado pelo Governo federal no processo de financeirização da dívida, cuja absorção foi imposta aos Estados em 1997. De uma dívida “nula” de R$ 112 bilhões naquele ano foram pagos até 2017 cerca de R$ 400 bilhões, e restam a pagar inacreditáveis R$ 540 bilhões.

Não há esforço fiscal nos Estados que possa suportar essa situação. Mas não é só isso. Além do que tomou dos Estados, o Governo federal se recusou a lhes pagar algo como R$ 637 bilhões por conta da chamada Lei Kandir como compensação financeira legal pelo que os Estados foram obrigados a deixar de recolher em ICMS sobre produtos primários e semi-elaborados. Essas duas contas, o que deve ser restituído pela imposição de 1997 e o que deixou de ser pago pela Lei Kandir, se elevam a mais de R$ 1 trilhão de reais. Eliminariam a crise fiscal.

Os principais instrumentos legais usados para escravizar os Estados, liquidando com sua capacidade de investimento em setores prioritários como saúde e educação, foi, inicialmente, o refinanciamento das dívidas estaduais em 97 (lei 9496), no governo Fernando Henrique, atendendo a ditames do FMI. Seguiram-se em datas diferenciadas o Plano de Recuperação Fiscal, a Lei Kandir, e a Lei Complementar que autorizou, no caso do Rio, uma moratória de 18 meses no serviço da dívida, dos quais todos os valores apartados, cerca de R$ 6 bilhões, foram corrigidos diariamente por índices da legislação em vigor.

Consideramos a dívida refinanciada em 1997 tecnicamente nula. Seu principal objetivo foi forçar os Estados a “contribuir” com o esforço fiscal destinado a gerar superávits primários exigidos pelo FMI na sua condição de árbitro dos acordos da dívida externa. Dívidas dos Estados, principalmente mobiliárias, e que estavam sendo roladas em seus bancos, foram consolidadas em bancos privados e pagas pelo Governo federal com títulos públicos federais, sendo repassadas de volta aos governos estaduais como um passivo explícito. Ora, títulos federais são um passivo potencial de toda a sociedade, do ponto de vista tributário. Incide em tese sobre todos os contribuintes, incluindo os contribuintes dos Estados. Eles não deveriam estar pagando de novo pela mesma dívida, no esquema jurídico considerado “bis in ibidem”.

O total refinanciado da dívida dos Estados atingiu em 1997/98 cerca de R$ 112 bilhões. Destes, cerca de R$ 400 bilhões, quase três vezes mais, foram pagos até 2017. Assim mesmo restavam a pagar R$ 540 bilhões. Além do caráter nulo da dívida, foram aplicadas sobre ela os mais elevados índices de correção monetária e juros, sempre no intuito de esgotar a capacidade de pagamento dos Estados para a consecução de superávits primários. Em qualquer parte do mundo uma relação desse tipo entre União e entes federativos soaria como absurda. E não há nenhuma surpresa em que, como resultado dela, a maioria dos Estados e Municípios está quebrada.

Voltando ao Rio, o então governador Pezão assinou o Plano de Recuperação Fiscal em 2017, com o serviço da dívida atualizada de R$ 9,4 bilhões, rigorosamente impagável. Em setembro de 2019, como mencionado antes, o saldo da dívida já era de R$ 34 bilhões, a ser cobrado até 2023 com juros e correção monetária. Os valores devidos e não pagos durante a vigência do Regime, bem como inadimplências em operações de crédito garantidas pela União, contratadas em datas anteriores à homologação da adesão, serão controladas, com encargos financeiros de adimplência, por meio de Contas Gráficas.

A Lei 159/2017, do governo Temer, criou a instância mais poderosa de controle pelo Governo federal do Plano de Recuperação Fiscal imposto aos Estados em troca de migalhas. A Supervisão do Plano, exercida pelo Governo, tem poderes para barrar qualquer investimento ou gasto do governador, notadamente de pessoal, que na verdade deve ser enquadrado em disposições draconianas. Além disso, impõe, mediante condicionalidades para rolagem de dívidas, a privatização de estatais estaduais, valendo-se de prerrogativas estabelecidas no Plano em nível acima dos governadores e das Assembléias estaduais.

Conta Gráfica é o registro dos débitos incorridos nos contratos dos Estados administrados pela Secretaria da Receita Federal, em operações de créditos garantidos pela União e não pagas durante o Plano de Recuperação Fiscal. O saldo atual do Rio, da ordem de R$ 34 bilhões, deve ser pago, como dito, até 2023. Sua origem, pela Lei 9496/97, era cerca de R$ 15 bilhões, dos quais foram pagos imediatamente R$ 2 bilhões. Dos R$ 13 bilhões restantes, refinanciados, foram pagos mais de R$ 29 bilhões, portanto mais do dobro da dívida original. Não obstante, restam a pagar cerca de R$ 78 bilhões. É literalmente impagável. Na verdade, do ponto de vista político, o que foi pago indevidamente terá que ser restituído, talvez num processo constituinte.

A distorção financeira constatada na relação entre Governo federal e Estados e Municípios deve ser entendida como ato de subordinação do Estado ao sistema financeiro global. O que sempre esteve em jogo, desde o início desse processo, foi a financeirização da economia brasileira mediante a ampla bancarização e a securitização de dívidas bancárias. Em 1996, ao amparo da Lei 121 146, o então governador Marcelo Alencar tomou um crédito de R$ 180 milhões na CEF, sob garantia federal, para pagar décimo terceiro a servidores e cumprir imposição do FMI, demissão voluntaria e outras medidas de enxugamento forçado do Estado.

Por aí se veriam as condicionalidades futuras, sobretudo no terreno da privatização do saneamento e da água, hoje um dos principais projetos de vampirização do país por parte de Paulo Guedes. De fato, junto ao empréstimo da Caixa, vieram 44 condicionalidades, incidindo sobretudo, duramente, sobre direitos dos servidores: perda de todos os benefícios e direitos, como Sistema de Progressão Funcional, e privatização de todo o parque empresarial estadual. Como nem tudo ainda foi cumprido, a perspectiva é uma radicalização desse processo, para o Rio e para os demais Estados endividados, sobretudo Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

Quanto aos servidores estaduais e municipais, intimidados e desalentados, que tudo isso sirva ao menos para que entendam quem é o inimigo. Não é o governo estadual, mas o federal. E nem é mesmo o governo, mas o neoliberalismo que ele representa. É aí o ponto do ataque.


*Economista e Professor

** Especialista em Dívida Pública